Cultura do cancelamento
Cancelaram voos, casamentos, formaturas, jantares.
Cancelaram todo um ano letivo, a produção de kombis no Brasil, os lanches no avião e as balinhas no Uber.
Cancelaram o carnaval. Em algumas cidades, cancelaram até o feriado de carnaval – e eu nem sabia que prefeito tinha poder para cancelar feriado.
Cancelaram o horário de verão. Uma canetada e lá se foi uma tradição que tornava nossos dias mais longos e luminosos.
Cancelaram o Orkut, a TV Globinho e o Chaves no SBT.
Cancelaram o contrato de Gina Carano para a próxima temporada de Mandalorian e a participação de Kevin Pearson em The Manny.
Cancelaram a mudança de nome da ponte Costa e Silva. Mudaram, depois mudaram de novo e agora ninguém sabe o nome oficial. Cancelaram a piscina com ondas no Parque da Cidade e a construção da Disney em Brasília.
Cancelaram até as filas para sair do avião, fato que atenta contra a identidade nacional.
Cancelaram as Olimpíadas e o Torneio Rio-São-Paulo. Cancelaram definitivamente o Botafogo da série A.
Enquanto isso, muitas outras coisas deveriam ser canceladas e estão aí, intactas. Deveriam cancelar o Tik Tok, o ano do boi, a tomada de três pinos, os áudios longos no Whatsapp, os anúncios do Youtube.
Uma presidente tentou cancelar os substantivos comuns de dois gêneros, fazendo-os flexionar à força. Já outros tentam cancelar é a própria flexão de gênero e inventar um certo gênero neutro para tudo.
Estão tentando cancelar Monteiro Lobato e a turma do Sítio. Mas se cancelarem ele, pelos mesmos critérios não sobra nem Machado de Assis nem Euclides da Cunha – e depois cancelam toda a literatura brasileira e a gente vai ler só tweets. Mas fake news, porque também cancelaram a verdade.
A verdade é que vivemos uma cultura do cancelamento há muito tempo.
Agora estão falando que a Karol Conká cancelou o Lucas no Big Brother e depois teve shows e contratos cancelados aqui fora. Apenas uma consequência natural dessa cultura opressora do cancelamento, essa cancelanormatividade, esse etos cancelador, que acabou por cancelar, também, a volição humana.

Rodrigo Bedritichuk é brasiliense, servidor público, pai de duas meninas e autor do livro de crônicas Não Ditos Populares
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