Aos 70 anos, 50 deles passados em Brasília, tia Zélia serve comida, histórias, afeto e respeito na Vila Planalto.
Por Mariana Vieira
adentrou o sonho concretizado de Juscelino Kubitschek, que ainda era, no início dos anos 1970, um amplo canteiro de obras, no qual o então marido trabalhava. Não po- deria suspeitar que, ali, entre aveni- das largas e prédios monumentais, ganharia outro nome, uma grande família e um amigo improvável.
Recém chegada, começou então a trabalhar na cantina que servia os trabalhadores alocados nas obras da Esplanada dos Ministérios.
“Eu sabia fazer só a comida da minha gente, arroz e feijão, mas sou muito inteligente, não dou trabalho para aprender as coisas, e fui melhoran- do a cada dia”.
Depois de oito anos, finalizadas as obras, a cantina fechou. Depois disso, Maria foi diarista, trabalhou em uma empresa de festas, mas Maria de Jesus Oliveira da Costa nasceu sob o signo dos Três Reis Magos, no dia 6 de janeiro de 1954 no interior da Bahia, na cidade de Buritirama. Poderia ter sido mais uma brasileira sertaneja na peleja, carre- gando água na cabeça por longas distâncias.
“Eu caminhava e falava só, não, com Deus, e sabia para que lado era Brasília, e falava assim: um dia eu vou pra lá e eu vou montar um restaurante”.
O desejo crescia em forma de sonho, que mostrava ela cozinhando para o povo dentro de uma roça, mas só com mandioca para servir. Intrigada com aquilo, resolveu consultar o padrinho, o sábio Astrogildo, que lhe proferiu:
“Minha filha, você tem um futuro muito grande, é uma pena que o seu padrinho já está velho e não vai estar aqui para poder ver”.
A estrela-guia do nascimento dela, se não a levou até Belém, in- dicou o caminho até a recém cons- truída Capital Federal, quando ela tinha apenas 18 anos e três filhos, dois dos quais vieram junto no pau de arara.
Depois de percorrer os 970 qui- lômetros do trajeto, Maria de Jesus nunca deixou de cozinhar para a família, preparando com esmero a marmita que o pai dos filhos dela levava para o trabalho no
Serviço Federal de Processamento de Dados (SER- PRO), onde era jardineiro. A comida cheirosa chamou a atenção de um colega de trabalho, que pediu a pri- meira quentinha.
“O pessoal começou a perguntar, Cícero, de onde é que você traz essa comida, e ele disse, minha coroa que faz.” E aí eu falei pra ele pedir para que mandassem o dinheiro para comprar os ingredientes e trazer os po- tes, que ela cozinhava e mandava arroz, feijão, frango ensopado, carne com mandioca, farofa. Comida boa e farta, feita com esmero.
Os pedidos foram crescendo e o fogão de quatro fogareiros ficou pequeno para tantas bocas ávidas pela comida da “tia”, que, aos poucos, foi colocando mesas também na porta de casa, na Vila Planalto. Brasília, construída para representar o sonho de prosperidade da nação, começava a sorrir para a baiana.
“Aqui é um pedacinho do céu. Pra mim. A situação em que eu cheguei aqui e a que eu me acho, aqui é o paraíso”, conta a cozinheira conhecida por Tia Zélia,
uma homenagem à própria mãe e a toda gente que a chama por tia. Menos o Presidente da República. “Ele me chama de véia, e eu chamo ele de companheiro”.
Convidado especial
Tia Zélia já cozinhava para fora quando, em 2008, foi escolhida para cozinhar em foi chamada para co- zinhar em evento no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, não para os visitantes, mas para os chefs de cozinha que ali trabalhariam.
Tradicionalmente, nos restaurantes, a comida servi- da à equipe antes do serviço é chamada de refeição de família, o que fazia todo o sentido para ela. “Eu cozi- nhava e deixava pronto para minha filha Márcia servir aqui no restaurante. Vinham me buscar para levar os panelões para o Centro de Convenções.”, lembra.
No terceiro dia deste esquema, um dos chefs cantou a bola para Zélia.
“Hoje a senhora vai ter um convida- do especial. E eu pensei, será que é o Presidente?”, ela jura que foi a primeira coisa que lhe passou pela cabeça.
A cozinheira baiana havia votado em Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro e no segundo mandato, e tinha um sonho de conhecer o Presidente.
“Eu sei que tinha muita gente especial, mas mais do que o Presidente não tem, não”. Sua intuição estava correta.
“Quando eu penso que não, numa distância como daqui até ali, aqueles homão, seguranças, e no meio, um toco de trem no meio, o Presidente!”, relembra com franca alegria de quem, na ocasião, pulou do balcão e correu para abraçar Lula.
“Eu já cozinhava para os assessores dele e não sabia!”.
Lula almoçou, perguntou da vida de Zélia, de onde era, o que fazia, como sustentava os filhos e pro- meteu que a chamaria para uma conversa.
O Presidente cumpriu a promessa e mandou buscar a cozinheira para o Palácio do Planalto, que ela nun- ca havia visitado. Chegando lá, chamou a atenção dos jornalistas de plantão por ser uma visita fora da agenda oficial do chefe de Estado, tendo um encontro a portas fechadas.
O chefe de gabinete à época, Gilberto Carvalho, in- termediou a visita, que durou duas horas e meia. “Con- tei minha vida todinha e ele olhou no fundo dos meus olhos, eu encarei ele também, e perguntou, menina, o que você mais precisa neste momento?”.
Zélia, que também era a Maria de Jesus que saiu de Buritirama, não teve dúvidas: “Preciso de água e luz no Nordeste para o meu povo que está passando fome e sede”.
Eram, afinal, promessas de campanha, e a baiana chegou a retornar à terra natal acompanhada de asses- sores do Governo para auxiliar no desenho de iniciati- vas que viriam a capilarizar as redes de distribuição de água e energia elétrica no sertão baiano.
Ela virou também a cozinheira de confiança do chefe de Estado e de seus apoiadores, que passaram a frequentar o restaurante na Vila.
“A Dona Marisa mandava buscar comida quando queria variar o cardápio do Palácio”, lembra.
Zélia conta ter facilidade em preparar a rabada, iguaria nacional, forjada com a carne do rabo do boi em cozimento longo e servida com agrião.
“Ele come de tudo que eu faço, mas esse é o preferido”.
Em contrapartida, ela conta que o mais difícil é fazer o ovo que agrada o Presidente.
“Tem que ser com as bordas branquinhas, clara bem durinha, a gema mole encorpadinha para colocar em cima do arroz, que precisa ser soltinho, sem cebola, só com alho, e acompa- nhado de feijão novo”, descreve, com carinho.
Quintal de casa
Sentada em uma das mesas do restaurante, que ocupa desde sempre o número 8 da Rua Maranhão, na Avenida Pacheco Fernandes Dantas , ela não almoça.
“Comi em casa. Não estou podendo por conta da pressão alta, cozinho pra mim e venho para cá”.
O “cá” é hoje uma ampla casa, onde a cozinha, salão e banheiros coexistem de um lado da rua e, do outro, uma tenda comporta mais mesas. Mas há quem prefira mesmo sentar embaixo da copa das árvores ou do lado da horta da cozinheira, onde planta cebolinha, salsinha, pimentas e folhagens que entram nos preparos.
Enquanto relembra os inícios, mantém o olhar atento para o salão, e sinaliza para uma das quase 30 funcionárias que se aprume para retirar o pedido de uma mesa próxima.
“Esse casal nunca veio aqui antes. Eu conheço e falo com todo mundo, eu não considero que tenho clientes, eu tenho famíia”.
E, como tal, faz questão de que o ambiente seja respeitoso para toda sua gente, dentre os quais figuram ministros e ex-ministros, senadores, autoridades dos Três Poderes, membros da militância petista, artistas e qualquer brasiliense que aprecie uma comida bem feita ou quem deseje conhecer o tempero que encantou o Presidente do Brasil.
Durante a semana, o público cativo prestigia o cardápio que se repete na ordem dos dias: bife acebolado, costela com mandioca e frango ensopado com açafrão e quiabo às segundas-feiras. Terça é dia de costelinha e galinhada, seguida de carne assada na quarta-feira, carne de sol e a famosa rabada nas quintas e, para fechar a semana, a feijoada e o pernil são servidos na sexta-feira.
Mas é aos sábados que o caldo engrossa e não sobra feijão preto no samba da Tia Zélia, evento cultural que literalmente fecha a rua e reúne entusiastas da música, turistas e moradores para comer, dançar e brindar com cerveja gelada e caipirinha.
“Eu não bebo, nunca bebi, mas sou pé de valsa”, confessa.
Destino e proteção
Na tarde de setembro em que Tia Zélia recebe a reportagem da Revista 61, o calor da seca prolongada é aplacado pelos ventiladores que sopram a parede dos fundos, enfeitada com bibelôs, presentes dos clientes, artefatos como quartinhas de barro, matulas metálicas, quadros e santuários.
No canto esquerdo, em uma espécie de altar, fotografias da dona do restaurante com Lula, um retrato da irmã Dulce, figuras dos Três Reis Magos, e recortes de reportagens sobre o local servem de fundo para fotos que vários comensais se revezam para tirar.
Acima das fotos se destaca a imagem de Nossa Senhora das Graças, a mesma figura que tia Zélia leva no pescoço em forma de colar. Devota, ela organiza todo ano um almoço especial em homenagem e agradeci- mento, oferecido para os frequentadores. Só revela o cardápio no dia, e tem uma regra: “pode comer de tudo, só não pode desperdiçar!”.
Tia Zélia conta que, uma vez, antes de dormir, pediu pela confirmação da existência da santa, pela sua intercessão e proteção.
“Naquela noite sonhei com ela, mas não vi o rosto, só o manto azul e branco, mas ela dizia que a partir daquele dia, tudo daria certo, e não foi que deu mesmo?”
Dez anos depois da primeira viagem que a levaria para a Capital, Zélia, ou Maria, conseguiu retornar à Bahia a tempo de pedir a última bênção ao padrinho que tinha profetizado seu destino.
“Eu não lhe falei minha filha, que você seguisse em frente, que daria tudo certo, que você ia realizar o seu sonho?!”.