Há uma distância brutal entre o mundo como ele é e o mundo como gostaríamos que fosse. Essa cisão é, talvez, o primeiro dilema de qualquer um que deseje compreender ou atuar na política com algum grau de realismo. Em vez de se prenderem a utopias ou a idealismos inócuos, os grandes estrategistas do poder, ao longo da história, foram aqueles que souberam navegar as marés da realidade concreta — com todas as suas contradições, ambivalências morais e imperfeições humanas.
Essa visão crua e sem enfeites da política tem seu maior expoente em Nicolau Maquiavel, que, em O Príncipe, rompe com a tradição filosófica que subordinava a política à moral. Para ele, governar não é um exercício de virtude, mas sim de cálculo. Maquiavel foi explícito ao dizer que um líder deve aprender a não ser bom quando as circunstâncias exigirem o contrário. Em outras palavras, política eficaz exige a habilidade de operar no mundo como ele é — povoado por interesses, ambições, traições e contingências — e não como ele seria em um modelo idealizado de justiça ou bondade.
Max Weber, por sua vez, em seu ensaio “A Política como Vocação”, fez uma distinção fundamental entre a “ética da convicção” e a “ética da responsabilidade”. A primeira orienta-se por princípios morais inflexíveis — “faço o que é certo, aconteça o que acontecer”. Já a segunda considera as consequências dos atos — “assumo a responsabilidade pelo que minha decisão causará”. Para Weber, o verdadeiro político é aquele que consegue equilibrar essas duas éticas, mas sempre com um olhar atento às consequências reais. A política, afinal, lida com o poder, e poder é, essencialmente, a capacidade de impor uma vontade sobre outras vontades — algo raramente compatível com purezas ideológicas.
Hannah Arendt também enfrentou esse dilema ao observar os eventos sombrios do século XX. Em suas análises sobre o totalitarismo e a banalidade do mal, Arendt mostrou como a desconexão entre as elites políticas e a realidade das massas pode gerar monstros. O desejo de impor uma ordem ideal ao mundo — seja ela a utopia comunista ou o império ariano — resultou em regimes de controle absoluto e extermínio. A história nos ensina que idealismos radicais, quando divorciados da realidade, tendem a descambar para formas brutais de autoritarismo.
O político que encara o mundo como ele é precisa entender que concessões, alianças espúrias, manipulações de imagem e até mesmo doses calculadas de mentira fazem parte do jogo. Isso não significa defender o cinismo absoluto, mas reconhecer que operar no campo do possível requer flexibilidade moral e estratégica. Lênin, por exemplo, falava da “verdade concreta” como o ponto de partida para qualquer ação revolucionária. Não basta ter a razão histórica; é preciso saber onde estão as forças sociais, quais alianças são viáveis, e quais riscos são aceitáveis.
Esse tipo de lucidez também é visível em autores contemporâneos como Chantal Mouffe, que argumenta que a política democrática não é o terreno do consenso perfeito, mas sim do conflito legítimo e regulado. Ela critica a ilusão liberal de uma política desapaixonada e racional, defendendo que os antagonismos não desaparecem — apenas mudam de forma. Negá-los é correr o risco de ver emergirem formas perigosas de populismo e radicalismo.
Olhar para o mundo como ele realmente é não é um convite à desesperança, mas sim à maturidade política. Trata-se de substituir o desejo pelo diagnóstico, o dogma pela análise, a indignação pela estratégia. Em um cenário global marcado por crises sucessivas, polarizações violentas e uma crescente desconfiança nas instituições, o realismo político é mais do que uma escolha — é uma necessidade.
Reconhecer que a política não é o espaço do ideal, mas da luta pelo possível, nos permite compreender melhor as ações dos que detêm o poder, assim como nos capacita a disputar esse mesmo poder com mais eficácia. Afinal, como disse Raymond Aron, outro pensador lúcido do século XX, “o realismo político é, acima de tudo, a coragem de encarar o mundo como ele é, não como gostaríamos que fosse”. E é só a partir daí que qualquer transformação significativa pode começar.

 
         
         
         
         
        

