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terça-feira, janeiro 28, 2025

O silêncio de Deus: inatividade ou reflexo da perfeição?

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A questão da “inatividade” de Deus após a criação do universo, tal como descrita em diversas tradições religiosas, especialmente na Bíblia, é um ponto de reflexão que tem provocado pensadores por séculos. Muitos, como o escritor José Saramago, sugerem que esse “descanso” ou suposta ausência divina depois de seis dias de criação pode soar paradoxal. Afinal, por que Deus, com o poder infinito de criar, interromperia suas atividades e se afastaria do que Ele mesmo formou?

Entretanto, essa linha de raciocínio pode estar enraizada em uma interpretação limitada da ideia de criação e ação divina. Uma perspectiva mais profunda nos leva a uma pergunta intrigante: Se Deus realmente criou o universo com perfeição, não seria sua “inatividade” um reflexo da suficiência dessa criação?

A perfeição, como conceito filosófico e teológico, sugere algo que não precisa de correção ou ajuste. Quando algo é considerado perfeito, sua essência reside na completude e na harmonia de suas partes. Se pensarmos na criação de Deus sob essa ótica, o universo não precisaria de constante intervenção divina porque já funcionaria dentro de uma ordem natural, plena e autoreguladora.

Assim, a “inatividade” de Deus poderia ser interpretada como um sinal de que a obra foi finalizada com tamanha maestria que se sustenta por si mesma. O papel do Criador seria o de estabelecer os fundamentos e leis do universo — como a gravidade, o ciclo da vida, a passagem do tempo — para que esse sistema funcione sem a necessidade de correções contínuas.
É o que vemos na própria natureza: os processos naturais seguem seu curso com precisão e regularidade impressionantes. Das marés oceânicas à órbita dos planetas, tudo parece funcionar de maneira estável e previsível. Essa regularidade poderia ser vista como evidência de um plano divino bem executado, um reflexo da “suficiência” que torna desnecessária a interferência constante de Deus.

O conceito de “descanso” de Deus no sétimo dia, descrito no Gênesis, muitas vezes é interpretado de forma literal, como se Deus tivesse decidido se afastar e deixar o universo ao acaso. No entanto, no contexto bíblico e teológico, o “descanso” pode ser melhor entendido como um estado de satisfação ou completude.

Na tradição judaica, por exemplo, o descanso sabático não significa inatividade total, mas um tempo de contemplação, celebração e apreciação do que foi realizado. Aplicando isso a Deus, o descanso poderia simbolizar a contemplação de uma criação perfeita, onde cada detalhe foi cuidadosamente planejado para funcionar sem a necessidade de intervenções frequentes.
Em vez de ver o descanso de Deus como passividade ou ausência, podemos interpretá-lo como um sinal de que a criação não precisa de mais “retoques”. Um artista que termina uma obra-prima não volta para corrigi-la continuamente — ele se afasta para admirar o resultado, confiante de que sua criação permanecerá bela e autossustentável.

Outro aspecto a ser considerado nessa discussão é a ideia de liberdade. Se Deus criou o universo com leis naturais, livre-arbítrio e autonomia para os seres humanos, a “inatividade” pode ser um sinal de respeito à própria criação. Deus pode ter estabelecido os fundamentos, mas ao não intervir constantemente, Ele permite que as criaturas e o universo evoluam, cresçam e floresçam por conta própria.

Esse “silêncio” divino pode ser visto como uma expressão da confiança de Deus na própria criação e nas criaturas que a habitam. A liberdade de ação dada aos seres humanos, por exemplo, seria um reflexo desse respeito e desse desejo de não controlar cada detalhe de nossa existência.
Porém, quando olhamos para o universo, percebemos também o caos, a dor e o sofrimento. Seria essa desordem uma evidência de que o universo não é tão perfeito assim? Ou isso faz parte de uma ordem maior que nossa visão limitada não consegue captar?

Muitos filósofos e teólogos argumentam que o caos aparente pode ser parte de uma perfeição que está além da nossa compreensão imediata. Assim como uma sinfonia pode ter momentos de tensão que, no contexto da obra como um todo, criam harmonia, o universo pode ter elementos que, isolados, parecem desconcertantes, mas no panorama geral contribuem para a perfeição do todo.
Se considerarmos o cosmos como um sistema em constante evolução, o sofrimento, a mudança e até mesmo a entropia podem ser componentes necessários para o crescimento e a transformação. O que para nós pode parecer desordem, para uma mente infinita como a de Deus pode ser parte de um propósito maior.

A questão da “inatividade” de Deus após a criação do universo nos leva a repensar o que significa perfeição e suficiência. Se o universo é perfeito em sua criação, a ausência de intervenções contínuas por parte de Deus pode ser o maior testemunho de sua confiança na obra realizada. Em vez de ser um sinal de abandono ou indiferença, o descanso de Deus pode simbolizar a harmonia de uma criação que funciona por si só, refletindo a grandeza do Criador.

A reflexão final fica para nós: ao invés de buscarmos provas da presença divina em intervenções miraculosas ou eventos extraordinários, talvez devamos aprender a ver o divino na regularidade e na estabilidade das leis que regem o cosmos. Afinal, a verdadeira perfeição pode residir naquilo que funciona tão bem que sequer percebemos que está funcionando.

E para você? O que é a perfeição na criação divina? Uma obra finalizada ou um processo contínuo de evolução?

José Adenauer Lima
Formado em economia, com pós-graduação em Estratégia pela ADESG. Especialização em filosofia clássica.Trabalha no Poder Legislativo do DF há 32 anos nas áreas de orçamento público e processo legislativo.
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