O texto que acompanhava a imagem da menina não poderia ser mais claro: “Menina de 10 meses com microcefalia e lisencefalia causada pelo zika. Uso de sonda nasoenteral para alimentação e medicação devido à dificuldade de deglutição. Não possui controle de tronco, mas responde a estímulos com os olhos”. A mensagem sem rodeios, com o aviso de uma doença que assombrou diversas mães no país há dois anos, foi a última coisa que Joyce pensou quando viu Larissa.
“Como você sabe que a criança é seu filho? Eu ficava pensando isso dia e noite. Mas quer saber? Você simplesmente não sabe, é seu coração que fala, e ele fala alto. Quando eu vi a foto, sabia que era a minha filha. Isso tudo vai além da doença dela”, disse, emocionada.
Essa não foi a primeira vez que a professora da rede municipal de Belo Horizonte entrou em um cadastro de adoção. Muito menos que foi chamada para conhecer uma criança. Mãe de dois rapazes, André, 17, e Ivan, 20, e madrasta de Luiz Gustavo, 23, o sonho de ter uma filha sempre foi presente em seu coração. Assim que André nasceu, em 2000, ela e o ex-marido logo entraram na fila à procura de uma menina. Como o cadastro era específico para meninas saudáveis e recém-nascidas, Joyce pensou que demoraria ao menos quatro anos até que ligassem, tempo de espera estimado na época para o tipo de perfil. Mas seis meses após o nascimento do filho, foi chamada para conhecer uma bebê.
“Fomos até o abrigo, seguramos a neném no colo, mas não tivemos certeza. Achei que não estávamos preparados ainda. Não senti que era ela quem eu buscava”, disse Joyce. Quase 17 anos depois, ela finalmente encontrou. Apesar dos familiares e alguns amigos próximos alertarem a família para a gravidade das sequelas que a microcefalia deixa nas crianças, ela e Fabrício esqueceram o medo e ouviram o coração. Contudo, não foi um processo rápido.
O pai de Larissa hesitou pela adoção… até conhecê-la. Com quatro anos de casados e com os filhos já crescidos, conversavam sobre a adoção. Passaram a frequentar grupos de apoio, preencheram a papelada do Cadastro Nacional de Adoção em 2015 e só dois anos depois, em 2017, ficaram habilitados para a acolhida. O perfil do casal era com exigências comuns e padrões da maioria das famílias disponíveis no CNA: até quatro anos, com doenças tratáveis e sem irmãos – no caso deles, tinha que ser uma menina. “Todo mundo que entra no cadastro idealiza a adoção considerada perfeita. Bebê saudável, recém-nascido, escolhido sob medida para a família. A nossa também era assim”, afirma.
Não era o sonho deles adotar uma criança com microcefalia. Mas era o sonho deles adotar uma filha. E foi assim que ela chegou. As discussões e o entendimento acerca da adoção ajudaram na desconstrução desse perfil. No entanto, ainda acreditavam que era o ideal. Até chegar a imagem de Larissa. Com ela, a persistência de Joyce para conversar com o marido e explicar que o amor incondicional dá forças e encoraja. E eles o tinham de sobra.
“Ele estava mais racional que eu. Sentia medo de não corresponder às expectativas, de não conseguir lidar emocionalmente com a doença, não dar o melhor para Larissa. Eu também sentia medo”, explica Joyce. Em janeiro deste ano, ela e Fabrício vieram a Brasília conhecê-la ainda no abrigo onde ficava. O marido disse, por diversas vezes, que era uma visita sem compromisso. Insistiu que Joyce não criasse expectativas. Quando chegaram e pegaram a menina no colo, não contiveram a emoção. “Ele chorava tanto. Naquele momento, ele sentiu o mesmo que eu”.
Passaram quatro dias na cidade e voltaram a Betim, de carro. O trajeto foi feito em silêncio. “Eu fiquei arrasada de não voltar com a Larissa. Sempre chorava quando falava dela. Ele também tinha ficado triste. Estava pensativo”, lembra. Passaram a semana inteira pensando, noites em claro, discutindo se dariam conta mesmo da adoção. Foi quando Fabrício deu a notícia. “‘Já estou preparado para sua resposta’, ele disse. Meu coração disparou. ‘Vamos voltar para buscar Larissa’”, conta, emocionada.
Com pouco dinheiro, recorreram a ONG Adotar, em Belo Horizonte, responsável por conduzir trabalhos de grupos de apoio para adoção. A presidente da organização conseguiu 10 dias de hospedagem e dinheiro para a alimentação. Já os amigos da igreja se mobilizaram e reuniram o custo para a gasolina. Mais 10 horas de carro. Ansiedade batendo forte no peito. Chegaram no último 29 de janeiro e ficariam até 8 de fevereiro. Mas dia 1º já havia saído a guarda provisória da filha.
“Eu tinha R$ 7 na minha conta e R$ 200 no bolso. Mas meu coração tava cheio de esperança e confiança de que tudo ia dar certo. E tudo ocorreu além do que eu esperava. A diferença entre um filho biológico e um filho adotivo é que você pode escolher. E escolhemos a Larissa com tudo o que ela é e representa. A doença é só um obstáculo”, comenta.
A pequena Larissa foi diagnosticada com microcefalia desde que nasceu. A saúde física dela é ótima, mas o quadro neurológico é completamente comprometido por causa do zika vírus. Como é uma doença relativamente nova, os médicos ainda não conseguem ter um prognóstico fechado. Mas a família já fez um plano de saúde e espera que ela possa se desenvolver bem, com qualidade de vida e dignidade. Na quinta-feira (1º/3), ela fez uma cirurgia para retirar a sonda nasal e colocar uma sonda diretamente no estômago. A previsão é que tenha alta até terça-feira (6/3). Espertinha e risonha, conta Joyce, a pequena responde bem aos estímulos e é muito amorosa.
Joyce, Fabrício e Larissa vivem uma rotina de hospital desde o último 7 de fevereiro. Ansiosa para voltar para a casa, a família não vê a hora de poder curtir a mais nova integrante. Os filhos do casal esperam sempre por ela para dar carinho e pegar no colo. Joyce conta que a menina até ficou mais manhosa desde chegou para eles. “Agora ela só quer ficar no colo. Aos poucos o coração dá uma balançada, mas é só olhar para o sorriso dela que esqueço de tudo”, conta.
De acordo com o relatório da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal (VIJ-DF), Larissa foi entregue para adoção pela mãe biológica ainda no hospital. Além das condições socioeconômicas precárias, a família do bebê alegou não ter recursos emocionais para lidar com a doença.
Adoção no DF
A pequena Larissa foi a segunda bebê das 20 crianças e adolescentes com problema de saúde a ser adotada no DF neste ano. No Cadastro Nacional de Adoção, há 1.630 crianças com esse perfil, o equivalente a 33,39% do total. Para Walter Gomes, supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da VIJ-DF, a adoção de Larissa representa um sopro de esperança em relação à possibilidade de a Justiça Infantojuvenil, em parceria estratégica com os grupos de apoio à adoção de todo o Brasil, aumentar o número de famílias habilitadas predispostas a realizarem adoções que fogem do perfil padrão do país.
“As reações e palavras dessa família adotiva conduzem à indubitável conclusão de que adoção é entrega total e sem limites e que a prioridade deve ser não a satisfação primeira do adulto, mas a promoção da alegria, do bem-estar e da proteção integral do adotando. Quando existe o potencial e a incondicionalidade do amor acolhedor em uma família pleiteante, os traços, características, histórico genético ou familiar de uma criança ou adolescente apto para adoção se tornam secundários”, disse Walter.