Logo de início, quero afirmar que não existe obra criada pela inteligência artificial. Vejo a IA no papel de auxiliadora dentro do processo de criação humana, em especial na escrita. Porém, desenvolver uma obra completa, por enquanto, de acordo com nossa legislação, não é possível, isso porque a inteligência artificial não é possuidora de personalidade jurídica.
Até porque a legislação pátria protege o autor, em diversos sentidos. Começando pela nossa Constituição Federal, que trata dessa proteção como cláusula pétrea, em seu art. 5º.
Art. 5º
XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;
XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:
- a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
- b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;
Ainda sob a óptica legalista, o art. 11º da Lei 9.610/98, nos traz a primeira afirmativa que corrobora esse entendimento, ao dispor que o “autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.
A referida legislação também protege os direitos “morais do autor, que é a reivindicação da autoria da obra.
Art. 24. São direitos morais do autor:
I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;
II – o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;
No mesmo sentido, com relação aos lucros sobre a obra, o art. 28 da referida lei nos traz o titular desses direitos. Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica.
Existe um projeto de lei em trâmite na Câmara dos Deputados, a respeito dos direitos dos autores à luz da modernidade, que me chamou atenção a inclusão do parágrafo único no mencionado art. 28.
PL 2.370
Parágrafo único. O objeto fundamental da proteção desta lei, do ponto de vista econômico, é a garantia das vantagens patrimoniais resultantes da exploração das obras literárias, artísticas ou científicas em harmonia com os princípios constitucionais da atividade econômica.
Vejo, portanto, que a principal questão legal diz respeito à proteção ao direito econômico do autor. Ou seja, os direitos autorais protegem o autor e possibilitam ao autor o direito exclusivo de explorar economicamente sua obra, incluindo a reprodução, distribuição, exibição.
- Quem pode ser considerado o detentor dos direitos autorais sobre uma obra gerada por IA: o criador do algoritmo, a entidade que treinou o sistema ou a IA em si?
Nenhuma das hipóteses.
O detentor dos direitos autorais é a pessoa física, autor da obra, ou pessoa jurídica em alguns casos.
- De que maneira a utilização de obras protegidas por direitos autorais para treinar IA afeta os direitos dos criadores originais?
Se for constado que a IA utilizou alguma obra de protegida pelos direitos autorais, o autor da obra poderá reivindicar juridicamente a autoria, como mencionado. Inclusive, reivindicar eventual lucro pela utilização indevida da obra de terceiros.
- Como a regulamentação pode equilibrar a inovação tecnológica com a proteção dos direitos dos criadores humanos?
Atualmente, muitas pessoas se assustam com a palavra regulamentação. Regulamentação ou legalização, nada mais é que a criação de um conjunto de normas e diretrizes jurídicas acerca de determinado assunto.
A inteligência artificial chegou para ficar e é um caminho sem volta.
Certo dia ouvi uma frase, que foi replicada pela Ministra Carmem Lúcia, no seguinte sentido: que não me preocupa a inteligência artificial, mas sim a burrice natural.
Brincadeiras à parte, a matéria bruta dos criadores humanos é o intelecto, enquanto a matéria bruta da inteligência artificial são os bancos de dados.
Por outro lado, há tramitando no Congresso o Projeto de Lei nº 2.338 de 2023, de autoria do Senador Rodrigo Pacheco.
Art. 32. O Poder Executivo designará autoridade competente para zelar pela implementação e fiscalização da presente Lei.
Parágrafo único. Cabe à autoridade competente:
I – zelar pela proteção a direitos fundamentais e a demais direitos afetados pela utilização de sistemas de inteligência artificial
Art. 9º A pessoa afetada por sistema de inteligência artificial terá o direito de contestar e de solicitar a revisão de decisões, recomendações ou previsões geradas por tal sistema que produzam efeitos jurídicos relevantes ou que impactem de maneira significativa seus interesses.
Art. 27. O fornecedor ou operador de sistema de inteligência artificial que cause dano patrimonial, moral, individual ou coletivo é obrigado a repará-lo integralmente, independentemente do grau de autonomia do sistema.
- Quais são os desafios e as oportunidades que surgem com a interação entre direitos autorais e inteligência artificial?
Não posso deixar de citar como exemplo o uso da imagem da nossa imortal cantora Elis Regina, assim como da sua obra musical em parceria com Belchior, que foi utilizada por uma empresa montadora de veículos. Pelo que acompanhei, não havia consenso entre os herdeiros, que são os titulares dos direitos pós morte da artista. A propaganda foi suspensa e temos esse célebre caso como exemplo.
Acredito, portanto, que o grande desafio é a proteção de dados, a proteção aos direitos autorais e a responsabilização jurídica do fornecedor ou do operador da inteligência artificial.
- Para encerrar e agradecendo pela sua disponibilidade e participação, que conselho você daria para produtores culturais de modo geral, quanto a utilização da inteligência artificial em suas obras e a proteção de seus direitos autorais?
Não vejo problema na IA produzir recomendações relevantes para o desenvolvimento de obras, de modo que os autores possam filtrar as informações pertinentes no processo de criação.
O desafio na proteção dos direitos autorais é a criação da autoridade competente que ficará responsável por proteger direitos fundamentais, para poder identificar e responsabilizar civilmente os operadores ou fornecedores de IA quando violarem os direitos autorais de criadores de obras, podendo responsabilizar juridicamente quem eventualmente descumprir a lei.
Samuel Suaid
Advogado
Ouvidor Geral da OAB/DF
Consultor Jurídico da Associação Nacional dos Escritores e Editoras