Os 70 anos do documento que definiu o conceito de humanidade
Norteadora das Constituições de vários países, inclusive a brasileira, de 1988, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70 anos no dia 10 de dezembro. Mesmo que a maioria das pessoas não conheçam o teor deste documento assinado por 58 Estados-membros, ele faz parte do cotidiano de todo mundo e ajudou a regular direitos básicos, como condições dignas de trabalho, liberdade, igualdade, saúde, educação e propriedade, por exemplo. Sete décadas após a reunião da assembleia geral das Nações Unidas para firmar o documento, a luta pela defesa dos direitos humanos segue com diversos desafios. No Brasil, o principal é uma deturpação do conceito, que faz com que os menos informados ou conscientes usem o termo “direitos humanos” como sinônimo de defesa de bandido.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi lançada em 1948, num momento em que o mundo precisava se fortalecer, pós Segunda Guerra Mundial. De acordo com o professor e pesquisador, em direitos humanos da UnB, Alexandre Bernardino Costa, a declaração se formou em meio a diversos processos. “A revolução francesa e a declaração da independência americana, foram dois movimentos, absolutamente liberais, que escreveram cartas que são marco para os direitos humanos”, conta. O professor cita, ainda, a revolução mexicana e a revolução de Weimar, na Alemanha. Movimentos relevantes na construção e evolução de direitos humanos.Segundo o Procurador Regional da República, Felício Pontes, responsável por casos envolvendo o tema no Ministério Público Federal, é importante comemorar o aniversário dessa declaração, até para reforçar o que são os direitos humanos. “Deve ser comemorado, porque ela [a declaração] trouxe para toda a sociedade, uma tentativa de quebrar todos os preconceitos”, explica. Para ele, esses direitos são responsáveis pelos avanços da humanidade e, isso ainda não é compreendido por alguns grupos.
O artista de rua argentino Sebastian Algornoz diz sentir isso, em relação a profissão dele. O preconceito, ele reclama, vem da própria população. “Temos que falar mais de cultura, ter mais compreensão e sabedoria”, acredita. Ele mora em Brasília, desde abril de 2018, na casa de amigos e, faz malabares nos semáforos da capital, para garantir a renda.
Os direitos humanos são inerentes a todos independentes de etnia, sexo, nacionalidade, religião ou qualquer outra condição de uma pessoa. De acordo com a Organização das Nações Unidas, algumas das características, mais importantes, dos direitos humanos, são o respeito pela dignidade e o valor de cada indivíduo. Por isso, todas essas condições são igualmente importantes e podem ser evocadas em qualquer tribunal dos países signatários.
No entendimento do professor Alexandre, é preciso compreender que os direitos humanos não são injustificados e aleatórios. “É uma criação por conta das violações, que foram perpetradas ao longo da história e da luta, para que não fossem mais cometidas”, lembra. São afirmações, expressas em cartas, que devem reger a convivência em sociedade.
O presidente do Conselho de Direitos Humanos do Distrito Federal, (CDHDF) Michel Platini, diz que o direito ao voto, os direitos trabalhistas, são fruto de uma mobilização internacional pelos direitos humanos. “É um desafio a efetivação desses direitos, num momento em que, um setor da sociedade faz um embate aos direitos humanos”, relata.
Mesmo sem conhecer o documento da ONU, a catadora Adriana dos Santos sabe bem o que são essas violações. “Se preciso levar meu filho pequeno no hospital, a empresa não aceita meu atestado. Se vou ao colégio e pego uma declaração, posso ser mandada embora”, diz.
Defesa de bandido
Para o procurador Felício, uma visão deturpada que as pessoas construíram em relação aos direitos humanos, é a ideia de proteção somente dos mais vulneráveis. Essa compreensão acabou por afirmar que os mais fracos, eram pessoas que tinham cometido algum crime. Ele faz questão de explicar que quando uma comissão de direitos humanos atua no sistema carcerário, por exemplo, é para garantir que os condenados paguem pelos crimes que cometeram e precisam de um mínimo de dignidade dentro da prisão. “Que eles possam ser tratados como seres humanos e que a pena não passe daquilo que estabelece, que é privação de liberdade”, explica.
O defensor público Daniel de Oliveira reclama do fato de muitas pessoas partirem da premissa de que direitos humanos serve apenas para a defesa de bandidos.
“A gente esquece que direitos humanos também é saúde, educação, também é segurança pública, se isso não existir, o Estado passa a ser um ser soberano e a gente volta a ter uma época de ditadura”, opina o defensor Daniel de Oliveira.
O discurso contra os direitos humanos, segundo o professor Alexandre, mascara um comportamento grave: negação do outro. “A gente vivencia isso de uma forma muito agressiva, que bandido bom é bandido morto. Leva para casa o bandido, esse tipo de coisa”, reclama.
Direitos além da cadeia
Dados do Ministério dos Direitos Humanos apontam que cerca de 40% dos presos no Brasil ainda não foram julgados, mas cumprem pena sem condenação. Para o defensor público, isso é resultado da soma de lentidão da Justiça, excessos de prisões e falta de acesso a advogados, já que a maioria desses 40% é formada por negros e pobres, que já demonstra uma violação dos direitos humanos. “Da maneira como funciona hoje, é criar soldado para facção”, diz. Ele aponta que o ideal, seria oferecer ao infrator, a possibilidade da prestação de um serviço alternativo, em benefício de toda a sociedade.
Os moradores de rua sofrem preconceito e discriminação, que partem da própria sociedade. Além disso, eles são combatidos por agentes do governo, que deveriam dar assistência. Para o defensor Daniel de Oliveira, as atitudes conservadoras são uma forma de retrocesso. Ele diz que a população em situação de rua é a que mais sofre. “Quando um comerciante vê uma pessoa em situação de rua, em vez de tentar ajudar, chama logo a polícia para retirar aquela pessoa do local”, conta. Ele acredita numa sociedade com uma cultura mais forte em direitos humanos.
Ele explica como a Declaração norteou a Constituição brasileira, que recebeu o nome de Constituição Cidadã. O principal exemplo apontado é o Artigo Quinto. A atual Constituição veio após um período militar, na tentativa de reestabelecer, fortalecer e trazer outros direitos, que não existiam nas cartas anteriores. “A principal garantia são os órgãos fiscalizadores, entre os quais, a Defensoria, o Ministério Público, as ouvidorias de todos os órgãos e o Disque 100”, enumera Daniel.
No entanto, por mais que a caminhada seja longa e que ainda existam retrocessos, é possível perceber alguma evolução, como destaca Daniel. “Se a gente lembrar que a mulher sequer podia votar [hoje podemos ver] que o empoderamento da mulher cresceu muito”, comenta. “Tem legislações, como o Estatuto do Idoso, lei Maria da Penha, lei da inclusão. São várias as medidas no sentido de amparar os direitos humanos”, conclui.
Dever de todos
Em um pronunciamento oficial, referente à comemoração dos 70 anos da declaração, o Secretário Geral da ONU, António Guterres, disse que os direitos humanos são a base de sociedades pacíficas e do desenvolvimento sustentável. “Hoje, vemos hostilidades perturbadoras, direcionadas contra os direitos humanos, em todas as regiões. Vamos nos manifestar contra essas forças negativas”, declara. Na mensagem ele afirma que a sociedade e os governos, devem se juntar, para garantir que as palavras, sejam traduzidas em ações e manifestações pelos direitos humanos. “Eles protegem todos nós”, finaliza.
Conheça os artigos
- Liberdade e igualdade de todos os seres humanos;
- Não discriminação;
- Direito à vida, liberdade e segurança pessoal;
- Proibição de escravatura;
- Proibição de tortura e tratamento degradante;
- Direito à personalidade jurídica;
- Direito à igualdade perante a lei;
- Direito a recurso efetivo perante jurisdições nacionais;
- Proibição de prisão, detenção e exílio arbitrários;
- Direito a ser julgado em público num tribunal independente;
- Direito a ser considerado inocente até prova em contrário;
- Direito à vida privada, familiar e proteção da correspondência;
- Direito a circular livremente no país e de sair e entrar em qualquer país;
- Direito de requerer e receber asilo;
- Direito à nacionalidade;
- Direito de casar e de constituir família;
- Direito à propriedade;
- Liberdade de pensamento, consciência e religião;
- Liberdade de expressão, opinião e informação;
- Liberdade de reunião e associação pacíficas;
- Direito de participar nos assuntos públicos do seu país e em eleições livres através do voto secreto;
- Direito à segurança social;
- Direito ao trabalho, a remuneração suficiente favorável e a aderir a sindicatos;
- Direito ao repouso e ao lazer;
- Direito a um nível de vida adequado;
- Direito à educação;
- Direito de participar na vida cultural da comunidade;
- Direito a uma ordem social para a plena aplicação dos direitos aqui enunciados;
- Deveres dos indivíduos para com a comunidade;
- Nenhum indivíduo ou Estado pode atentar contra os direitos e liberdades acima mencionados.
Instrumentos de defesa
Ministério Público: Vela pelos direitos básicos do indivíduo. No âmbito penal, é acusador, mas também tem que assegurar que a pena não passe da privação de liberdade, que não haja tortura, maus tratos, nem nada que atente contra a dignidade do ser humano.
Disque 100 do Departamento de Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos: Tem a competência de receber, examinar e encaminhar denúncias e reclamações, atua na resolução de tensões e conflitos sociais que envolvam violações de direitos humanos.
Conselho de Direitos Humanos do Distrito Federal: Atua segundo a demanda. Pode entrar em qualquer órgão e solicitar qualquer documento na busca de mediação para solucionar o conflito.
Defensoria Pública: É uma instituição criada pelo Estado para defender pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Sociedade: Deve conhecer os direitos e defendê-los.