Amora é uma fruta tão curiosa que aparece nos mitos gregos, é bem adaptada ao cerrado e inspira reflexões sobre a teoria política de John Locke.
Para minha felicidade, calhou de ter uma amoreira debaixo do bloco. Eu a vejo da janela. Na verdade, eu a vi ainda pequena, sem frutos, os ramos crescendo, a copa alargando, o tronco se firmando.
Minhas filhas têm crescido frequentando essa doce árvore, que também é a alegria das crianças do bloco. Volta e meia algum menino aparece com a camisa e a boca manchadas e com um aviso: “Tem muito amora!”. As outras crianças lá se vão, chamando pais, mães e responsáveis para alcançar as frutas maduras que ficam no alto.
O que ocorreu de mais grave foi que nos últimos anos construíram uma calçada que passa bem ao lado da amoreira. Onde antes havia um verde gramado, agora transitam casais fazendo caminhadas, pessoas indo para a padaria, jovens sem rumo certo. E o que tem ocorrido com a amoreira? Tem ficado seca, pelada, mirrada.
Por alguns instantes, confesso, tenho sentimentos possessivos e penso que a amora é só minha e das minhas filhas. Nós é que vigiamos a amoreira da janela e vemos, lá de cima, se ela já tem frutos. Mas controlo esses pensamentos em nome da solidariedade e estendo o direito de propriedade a todas as crianças do bloco, e até distribuo as que pego nos galhos mais altos com outros meninos.
O que não dá para admitir é adulto pegando amora de criança. As amoras estão na árvore, mas a árvore é das crianças, se é que me entendem. Onde já se viu o casal caminhando no calçadão parar para pegar amora só porque viu outras crianças ali trepando nos galhos e se deliciando com a fruta? Pois eu tenho certeza que mesmo que o pé de amora estivesse cheio, mas não tivesse ninguém por perto, a caminhada continuaria sem interrupções.
Mas vamos supor que, por se tratar de um bem da natureza, também o direito de propriedade assiste aos adultos, ainda que no curso de uma caminhada.
Eis, porém, a gota d’água: outro dia passou uma senhora com dois (dois!) sacos cheinhos de amora madura, depenando toda a árvore, sem deixar sequer uma amorinha esquecida. Nesse caso, nem mesmo John Locke, o pai do liberalismo, consentiria com tal gesto.
É que o inglês dizia que os bens naturais estão à disposição de todos, mas, a partir do momento em que uma pessoa aplica a eles o seu trabalho, então deixa de ser propriedade comum para ser propriedade dela: “Ainda que a água que corre na fonte pertença a todo mundo, quem duvida que no cântaro ela pertence apenas a quem a tirou?”.
Para que um ganancioso qualquer não lese a humanidade, o direito de propriedade, para Locke, tem limites: ele é válido desde que não haja desperdício e conquanto ainda sobrem bens disponíveis para o resto dos homens.
Pois aí está uma advertência filosófica contra aquela senhora, que só porque viu amoras num gramado achou que poderia tomar todas para si, deixando a infância sem os bens que a própria natureza lhe proporcionou.
Procurei em Locke se havia algum direito exclusivo de propriedade para as árvores que a gente vê crescer e cuida da janela, especialmente as amoreiras, mas não achei nada…