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domingo, julho 6, 2025

Cristina Roberto: um nome que alimenta a Capital Federal com comida e cultura 

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Na placidez do Jardim Botânico de Brasília, entre paredes de taipa e adobe que evocam as cores do cerrado, germina o projeto mais ousado de Cristina Roberto: o Cura Cozinha Orgânica. O local encarna a síntese de quatro décadas de uma trajetória que transformou uma mineira de Abaeté em um dos nomes mais respeitados da gastronomia brasiliense. Mais que um restaurante, é a materialização de uma filosofia: “Que a comida seja seu remédio e que seu remédio seja a comida”.

De família numerosa – cresceu com dez irmãos – Cristina aprendeu desde cedo os segredos do fogão. “Todo mundo lá em casa sabe cozinhar. Cresci fazendo pamonha, quitandas e o que mais fosse necessário para alimentar a família”, recorda. A transferência para Brasília aconteceu quando a irmã ingressou no curso de medicina na UnB. A jovem Cristina, porém, tinha outro sonho: ser atriz.

Seguiu para São Paulo em busca dos palcos, mas o destino reservou-lhe uma reviravolta dramática. Grávida de gêmeas, retornou a Brasília no início dos anos 1980, período em que precisou recorrer ao que sabia fazer melhor para sobreviver: cozinhar. “O que eu sabia fazer era comida”, resume com a simplicidade que a caracteriza. Começou vendendo pães integrais e quitutes que aprendera em Minas, num momento em que a capital federal via surgir as primeiras casas de alimentação natural.

Após trabalhar em alguns restaurantes com proposta macrobiótica, Cristina encontrou espaço na Pensão da Dona Laura, na W3. Ali, cozinhava para os frequentadores e produzia pães, iogurtes e produtos naturais. A experiência revelou não apenas seu talento culinário, mas também uma vocação empreendedora que transformaria sua vida.

O lendário Bom Demais: epicentro cultural

Em 1984, nascia o emblemático Bom Demais na 706 Norte, empreendimento que transcendeu o conceito de restaurante para se tornar o principal ponto de encontro cultural de Brasília durante os ventos democráticos pós-ditadura. O espaço virou palco obrigatório para poetas, jornalistas, intelectuais e artistas que definiriam a identidade cultural da capital nas décadas seguintes.

Naquelas noites efervescentes do Bom Demais, rostos que depois se tornariam ícones nacionais encontravam acolhimento e inspiração. Cássia Eller, Renato Russo, Hamilton de Holanda e Zélia Duncan foram alguns dos talentos que brilharam no espaço criado por Cristina, contribuindo para consolidar Brasília como um dos berços do rock nacional nos anos 1980.

Com o tempo, o Bom Demais evoluiu, acompanhando as transformações da capital e da própria Cristina. Na década de 1990, converteu-se em um sofisticado buffet, responsável pelos principais eventos públicos e privados da cidade. Nesse ponto, o nome Cristina Roberto já havia se estabelecido como uma grife gastronômica, sinônimo de qualidade e inovação.

Multiplicando talentos e sabores

O espírito inquieto de Cristina jamais permitiu que se acomodasse. Enquanto administrava o bem-sucedido buffet, aceitou o desafio de comandar o bistrô Bom Demais no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Por anos, serviu pratos refinados e criativos aos frequentadores de um dos principais espaços culturais da capital.

Sua próxima inovação veio com o Jardim Bom Demais, instalado no Jardim Botânico. Com uma proposta descontraída de piquenique, criou um ambiente único onde as mesas dispostas no chão, cobertas com toalhas xadrez vermelhas e brancas, propiciavam momentos de convivência e contemplação sob as árvores do cerrado.

Cada novo empreendimento de Cristina refletia não apenas seu tino comercial, mas principalmente sua sensibilidade para captar o zeitgeist brasiliense. Em cada espaço que criou, ela soube traduzir em sabores e ambientes as aspirações culturais e sociais do momento, estabelecendo uma conexão genuína com a cidade que a acolheu.

Compromisso social e político

A visão de Cristina Roberto sobre gastronomia sempre esteve entrelaçada com causas sociais mais amplas. Em 2018, ela deu um passo além de suas cozinhas ao se candidatar a deputada federal pelo Distrito Federal, representando o Partido dos Trabalhadores (PT). Sua plataforma política refletia os mesmos valores que norteiam sua atuação no universo gastronômico: promoção da alimentação saudável, combate aos agrotóxicos, fortalecimento da agricultura familiar, fomento à cultura e defesa dos direitos LGBTQI+.

A incursão na política institucional, embora tenha conquistado expressivos votos, não resultou em um mandato parlamentar. No entanto, consolidou sua imagem como uma voz ativa em debates que transcendem o mercado gastronômico. Para Cristina, comida nunca foi apenas sustento – é também um ato político, cultural e transformador. Sua campanha evidenciou como as questões da mesa se conectam intimamente com temas como sustentabilidade, justiça social e diversidade.

A transformação pessoal e o Cura

Os verdadeiros visionários frequentemente encontram nas adversidades o impulso para suas maiores criações. Após enfrentar a pandemia e superar um diagnóstico de câncer, Cristina percebeu que era o momento de dar um sentido ainda mais profundo à sua vocação gastronômica. Nascia assim, há pouco mais de dois anos, o Cura Cozinha Orgânica.

“Cura é o restaurante que eu sempre quis ter”, revela a chef, sintetizando um projeto que transcende o conceito convencional de estabelecimento gastronômico. Em uma construção de taipa e adobe, técnicas ancestrais que celebram as cores da terra vermelha do cerrado, o restaurante propõe uma gastronomia genuinamente comprometida com a saúde integral.

“Você não verá nada igual no mercado. A comida do Cura busca o equilíbrio, a boa digestão e a nutrição completa do corpo”, explica Cristina. O cardápio, que muda diariamente, prioriza ingredientes orgânicos, sem agrotóxicos, aditivos ou processamentos industriais. Verduras frescas, legumes, cereais integrais e proteínas de qualidade compõem refeições preparadas no dia, respeitando os ciclos naturais dos alimentos.

O menu degustação é servido em quatro etapas harmoniosamente pensadas: sopa, salada, prato principal e uma pequena sobremesa acompanhada de chá de ervas. O cliente pode escolher entre proteína vegetal, frango orgânico Korin ou pirarucu de manejo sustentável da Amazônia.

Este conceito restaurativo absorve influências diversas – da culinária ayurveda indiana à chinesa, da macrobiótica à africana, sem esquecer as raízes mineiras de Cristina. É o resultado de décadas de pesquisa e experimentação, combinadas a uma filosofia de vida que reconhece na alimentação um caminho para a saúde e o bem-estar integral.

O Cura ultrapassa o propósito de alimentar; é um projeto educativo que busca incentivar hábitos mais saudáveis na rotina dos clientes. “Nós mostramos que a comida saudável é fácil de fazer e pode ser deliciosa”, enfatiza Cristina, desafiando o preconceito de que alimentação nutritiva precisa ser insípida ou complicada.

Até nos detalhes finais da refeição, Cristina demonstra seu compromisso com o bem-estar. O café só é servido mediante pedido específico, pois a experiência no Cura se encerra com um chá cuidadosamente selecionado. “Eu desejo que meus clientes, além de comerem bem, tenham uma ótima experiência e uma boa digestão”, explica, revelando uma concepção holística que ultrapassa o momento da refeição.

Na carta de vinhos, apenas rótulos orgânicos da vinícola chilena Emiliana completam a experiência, reforçando o compromisso com práticas sustentáveis e produtos livres de químicos desnecessários.

O legado em construção

Aos olhos dos brasilienses, Cristina Roberto não é apenas uma empresária bem-sucedida ou uma chef talentosa – é uma contadora de histórias que utiliza sabores, aromas e espaços para narrar a evolução de uma cidade e de seu povo. Do jovial Bom Demais dos anos 1980 ao contemplativo Cura do século XXI, cada empreendimento marca um capítulo da biografia não só de Cristina, mas da própria capital federal.

A trajetória da mineira de Abaeté evidencia a capacidade de reinvenção e adaptação sem perder a essência. Sua percepção aguçada das necessidades coletivas a permitiu antecipar tendências e criar ambientes que transcendem o ato de alimentar para promover experiências transformadoras.

O que começou com a venda de pães integrais por necessidade transformou-se numa filosofia de vida e negócios que hoje inspira uma clientela fiel e crescente. A empresária que já alimentou gerações de brasilienses com sua culinária inovadora agora os convida a uma jornada mais profunda: redescobrir na alimentação consciente um caminho para o equilíbrio e a cura.

Como ela mesma define, seu trabalho atual é “um banquete que nutre e acolhe” – uma síntese perfeita para uma carreira que alimentou não apenas estômagos, mas também a alma cultural de Brasília ao longo de quatro décadas de paixão, criatividade e sabedoria gastronômica.

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