Seu nome é Chiquinho, seus olhos são azuis e se…
Por: Carol Cascão
…o coração fosse proporcional à estatura, Chiquinho, dono do Beirute Bar e Restaurante, seria Chicão -, ultrapassaria os seus 1,60m de altura, tamanha a generosidade. Tradicional em Brasília, localizado na esquina da 109 sul, o bar existe há 53 anos, emprega quase 100 funcionários, já publicou 4 livros e guarda muita memória.
Cansado da fome que tava, da fome que tinha, o personagem da música “Pau-de-arara”, composta por Carlos Lyra, com versos de Vinícius de Moraes, conta a história do cearense que pegou “o restinho de coisa que tinha” e rumou ao Rio de Janeiro. Coincidências à parte, e se emendar com um “estou indo pra Brasília. Neste país lugar melhor não há”, de Renato Russo, temos a fórmula matemática perfeita para descrever a história de Francisco Marinho, 82 anos, o nosso Chiquinho, a lenda da movimentada esquina da 109 sul, o motivo principal da existência do Beirute Bar e Restaurante.
“Eu vinha cansado da fome que tava, da fome que eu tinha
Eu não tinha nada, que fome que eu tinha
Que seca danada no meu Ceará
Eu peguei e juntei um restinho de coisa que eu tinha
Duas calça velha, uma violinha
E num pau-de-arara toquei para cá
E de noite ficava na praia de Copacabana”
(Carlos Lyra, com versos de Vinícius de Moraes)
Digo que o Chiquinho é nosso sim. Dentre tantos Franciscos, Marias, Josés e Antônios que sofreram por causa da seca do sertão, sobretudo na década de 50 -, apenas um tornou-se cidadão honorário de Brasília: o nosso querido Chiquinho, nascido em Ipú, a 180 km de Fortaleza. A narrativa faz parte de muitos -, lutaram e comeram o que nunca se imaginaria, acalmar um estômago que grita era impotência demais quando mais se precisava da onipotência. Mas se não fosse a condição climática do Nordeste, não teríamos Chiquinho, tampouco o Beirute, que quase fechou as portas, diante de uma crise financeira, em 1970, quatro anos após a inauguração.
O Bar do Abrãao, antes de tornar-se Beirute, foi fundado em 16/04/1966, por dois libaneses, Youssel Maaraoui e Youssel SarkisnKaawai -, que chegaram na segunda leva dos candidatos a pioneiros de Brasília, com pouco mais de 40 mil dólares. Na época existiam dois grupos, a dos pioneiros que chegavam para a construção da cidade e a dos moradores.
Chiquinho, ao lado dos dois irmãos, o Bartolomeu (Bartô) e o Aluízio, equilibravam suas bandejas entre as mesas de tampo branco e bancos de madeira; e no ofício de garçom, desde 1967, e seus irmãos, desde o princípio do restaurante, serviam quitutes árabes e chopinho gelado para jornalistas, políticos, artistas…futuros presidentes, jogadores de futebol…pais, filho dos pais, netos…
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“O novo estabelecimento constitui mais um passo da iniciativa particular nesta cidade, que muito contribui para a integração definitiva da nova capital da República”.
“A cozinha árabe é disputada por todos que a conhecem, seja qual for a nacionalidade de seu apreciador. Assim sendo, lá podemos saborear pratos que já são nossos conhecidos, como, por exemplo: Kibe Naye (quibe cru), Kibe Ballê (quibe frito), Kibe Mashuê (quibe assado), Mexuê (espetinho), Baba Ganouj (berinjela assada), Tabule (salada árabe), Marshi Kussa (abobrinha recheada), Malfuf (charuto de repolho), Hômus (grão de bico), além de outras iguarias típicas apetitosas que só os árabes sabem preparar”.
(trechos da publicação, na época, “Sua Revista”)
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Quando Abrãao guardou a “viola na sacola”…
E foi embora no pau-de-arara da vida, nasceu o lendário e tradicional Beirute Bar e Restaurante. A coragem para comprar o estabelecimento veio em sabor de filé a parmegiana e o parcelamento a pagar o investimento, em três boas porções de quibe -, já que na vida nada vem de mão beijada. Para a nossa sorte, Chiquinho e os irmãos conseguiram mais essa vitória.
Mas antes disso, Chiquinho já tinha vendido cocada, rapadura e feijão. Parece-me, inclusive, que teria tentado aprender a arte de um alfaiate, emendando com a função de balconista de farmácia, depois o “faz tudo” numa mercearia, e o ingresso aos serviços do Exército.
Bem antes de chegar a Brasília, Chiquinho, aos 18 anos, levou 10 dias num pau-de-arara (transporte utilizado até os dias atuais no Nordeste) em busca de melhores condições de vida no Rio de Janeiro. Morou em Bangu, onde comprou um bar, sentiu cheiro de mar e aprendeu a amar e… casar.
A paraibana, Maria das Neves, ? anos, (segundo minha tia avó é indelicado perguntar a idade de uma mulher) é a companheira eterna e mãe de seus três filhos: Marcelo Marinho, 47 anos, Francisco Emílio Marinho, 44 anos e Kellen Marinho, 40 anos.
Marcelo ajuda o pai no Beirute desde os 14 anos -, e Francisco, desde os 18. Embora um tenha formação em odontologia e o outro em publicidade, a formação familiar foi a que prevaleceu. O primo Célio Marinho também trabalha nesta gestão familiar. Juntos, os quatro “Marinhos” empregam quase 100 funcionários -, o que significa que quase 100 famílias são beneficiadas pelo Beirute, uma instituição brasiliense, mais que um restaurante.
“Passei dois anos tentando entrar para a equipe do Beirute. Queria demais trabalhar aqui. Diziam que eu era muito magrinho e não aguentaria o batente. Mas consegui. Sinto-me feliz no Beirute. Chiquinho nos passa segurança e gosta de verdade de nós”, diz Arnaldo Dutra, garçom há 14 anos no estabelecimento.
Antes de ir a Brasília, depois de deixar o Rio, Chiquinho tentou novamente o Ceará ao comprar uma mercearia. Mais um sinal de que não era mais possível fugir do destino, Brasília era mesmo o sonho prestes a realizar. “Meus irmãos já estavam na capital. Faltava eu. Após dois dias à minha chegada, comecei a trabalhar como garçom no ‘Beirute’”, disse.
Entre idas e vindas, dessa vez, “a bordo” de um fusca, a cara do Brasil na década de 70, lá se foi Chiquinho buscar a esposa no Rio de Janeiro e voltar para o Planalto Central. E começar, de fato, uma família, uma nova geração, a brasiliense.
“A casa é sua. Sente-se, peça um café e faça uma poesia”
As palavras de Chiquinho são uma prova de que cultura e gastronomia andam de mãos dadas. À exemplo disso, o Beirute já lançou alguns livros, como o Beirute Final de Século e Beirute: aromas, amores e sabores.
E a título de curiosidade, alguns pratos foram batizados com nome de pessoas que fizeram história no estabelecimento, como o Filet à Samuca, em homenagem ao jornalista carioca, Samuel Wainer Filho, que escrevia sobre política na época. O prato consiste num filet grelhado, acompanhado de batata e queijo, ambos gratinados, e ervilhas deliciosamente temperadas na manteiga. A versão Filet à Samunique, em homenagem ao filho deste jornalista, o também jornalista Samuel Wainer Filho, é acompanhada com arroz.
No Beirute, o quibe evolui, mesmo diante de um cardápio tradicional e praticamente intacto desde a década de 70, a iguaria é apresentada em roupagens diferentes. “Uma vez perguntaram se tinha quibe com ovo, daí surgiu o Kiberovo. Depois perguntaram sobre o quibe com queijo, daí surgiu o Kibeirute”, explica Chiquinho. E por aí vai…com um choppinho na caneca ou no copo, experimenta-se facilmente o quibe em suas várias versões.
Outros pratos árabes tradicionais estão no cardápio, como o grão de bico, a berinjela em pasta, a coalha, o chanclich, os espetinhos, as kaftas…enfim, o menu é enorme -, possivelmente todos serão agradados. Além das novidades que sempre surgem no cardápio: o Cinquentinha Brasília é um deles. Perfeita combinação de linguiça suína, levemente picante, refogada na cebola, acompanhada de batata sauté picante. Um chopp bem gelado é a harmonização do prato. Aliás, o Beirute tem a própria cerveja e chopp, batizados de Beira -, claro, além dos outros rótulos comerciais.
Não me espanta se poesias, cujos versos ensaiados estejam estampados num guardanapo, com marcas de azeite (o fiel Galo até os dias de hoje), tenham nascido ali. Ou mesmo frase espontânea, naquele tradicional papel em letras nas cores vermelha e verde, que embala a parmegiana e recebem um durex (digo aquele pedaço de fita adesiva), pronto para levar para casa.
Festa na escola era com quibe
Francisco Emílio, o filho do meio de Chiquinho, lembra que em dia de festa na escola, cada um levava um prato. “Seria surpresa se eu chegasse sem os quibes”, disse. Essa desfeita jamais poderia ser feita. O quibe era a vedete dos lanches em dias especiais na escola. Sem ele, a alegria não seria completa.
Se é com “q” ou com “k”, não importa. Faz sentido da maneira que se lê no cardápio, kibe com “K”, porque quibe, deriva da palavra kubbeh, que significa bola em árabe. Aquele bolinho feito com massa de semolina, recheado com carne (não misturado e, sim, recheado!), quente ou frio, cru ou frito ou assado. Ou até esfriado, naquele ponto que se come na escola nos lanches em grupo…tudo é bom.
Tradição: café da manhã com os funcionários
Digo que Chiquinho tem quatro filhos, três criados e o mais velho que não vive sem o pai, o Beirute. Todos os dias, o pão com manteiga com café, e bolo é tradição. É o momento do turno dos funcionários que trabalham de dia esquentar as turbinas para abrir as portas às 11 horas.
Reuniões do “Diretas Já” na mesa 14
A política sempre fez parte da dinâmica da cidade, principalmente em bares. O Beirute é um deles. Os tempos difíceis e falta de identidade da década de 70, aliados à sede de liberdade de expressão, fez com que muitos jornalistas e políticos preenchessem essa lacuna por meio de movimentos como o “Diretas Já”. Chiquinho lembra que a frase “Urna-se a nós” surgiu na mesa 14 do estabelecimento.
Serviço:
Beirute Asa Sul
SCLS 109 bloco A1 loja 2/4
Telefone: 61 3244-1717
Beirute Asa Norte
CLN 107 bloco D lojas 19/29
Telefone: 61 3272-0123