Brasília perdeu ontem um pouco do seu sabor. A cidade está um cadinho menos temperada. Morreu ontem, aos 70 anos de idade, o conhecido (e gostado de todos) Raimundo, chefe de cozinha do restaurante Ki Filé, ou Cavalcante.
Luiz Humberto de Faria Del’Isola
O “Grande Chef Raimundão”, como eu insistia em chama-lo, teve uma parada cardíaca e foi-se embora. O cearense/ candango vinha fazendo dialise diariamente há cerca de quatro anos. Contra a opinião de filhos, sobrinhos e amigos, insistia em ir para a cozinha. Teimosia, seu nome era Raimundo! Com o seu avental invariavelmente respingado de rabadas, feijoadas e cassulês, era impossível evitar que ele entrasse na cozinha do restaurante ‘para ver se estava tudo direitinho’.
Raimundo e seu irmão Anastácio fizeram de tudo um pouco na capital para onde vieram, ainda nos anos 60. Acharam o seu rumo junto às panelas, pratos e copos do famosíssimo restaurante La Romanina, do casal Mario e Emma Bonazzi, referencia gastronômica do início da cidade. Ali tomaram gosto por cozinhar e servir, aprendendo com quem sabia (e como sabiam, os Bonnazi!).
Tendo aprendido, foram à luta por conta própria e criaram em 1984, um boteco, na SQN 405 norte. Era um boteco mesmo, não passava disso. Pé sujo autentico, da melhor cepa. Lá começaram a servir cerveja gelada, pinga boa e uma comida das mais honestas da cidade. Pratos grandes, sem frescurinhas de “nouvelle cuisine’ ou de comeres saudáveis. Nada disso: comida muita, pratos grandes, rabos e tripas, feijões e torresmos.
O boteco virou restaurante, atravessou a rua, foi para 405, e lá está desde o remoto ano de 1991. A clientela sempre foi uma das atrações do boteco/restaurante. Que fauna, amigos, e insisto: que fauna! De tudo um pouco. De doutores da UnB a malandros da usura, de comunistas albaneses – que ainda os havia, nos tempos iniciais- a pefelistas de alto coturno. Isso sem falar nos inevitáveis cachaceiros chatos, que não existe boteco bom sem a presença deles.
De jornalistas famosos a advogados, os de porta de cadeia e os de sustentações orais em frente a togas protocolares. Todos tinham um ponto em comum, por mais que diferente pensassem, por maior que fosse a distância entre conta bancária de um e de outro. O ponto comum era o Raimundo. Todos o amavam, e eu o amava também. Impossível não gostar do mestre Raimundão, ‘avental todo sujo de ovo”, como na antiquíssima musiquinha de Dia das Mães.
Ainda bem que deixaram semente boa, os Cavalcante: filhos e sobrinhos que, se não suprem a falta dos originais – que há ausência que não se supre – pelo menos tocam com garbo e honestidade o boteco/bar/restaurante que herdaram e que, esperamos, não nos deixem sem a rabada das quartas e a feijoada das sextas.
O velório será hoje (24/5), às 13hrs na Capela 01 do Campo da Esperança, na Asa Sul. O sepultamento será às 16hrs.
Vai em paz, Grande Chefe Raiumundão.