É hora de reabrir as escolas?
Dadas as previsões decretadas por alguns governantes, a sala de aula passará a ser a nova fronteira do enfrentamento da COVID-19. Precisamos de uma resposta à pergunta: é hora de reabrir as escolas?
Para uma tomada de decisão, precisamos de argumentos.
Para termos argumentos, precisamos de uma base informacional.
Não posso me furtar à minha relação íntima com os argumentos da ciência aplicada à saúde pública.
Durante o mestrado em Bioética na Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília, tive a oportunidade de olhar para o tema para além dos meus conhecimentos de biologia. Formei conceitos sobre saúde pública com auxílio de diversos interlocutores: médicos, filósofos, advogados, biólogos, veterinários, antropólogos, comunicadores sociais, cientistas políticos, entre outros colegas. Cheguei à conclusão sobre o quanto as ciências da saúde são politizadas e interessadas.
Mas a tensão das forças que a regulam, oscilam. Ora impera o perigoso ditame do biopoder, a Scientia, o saber como sinônimo de poder. No entanto, entregarmos tudo ao poder da ciência mostrou-se catastrófico em vários momentos, como na história da exclusão social gerada pela hanseníase, das atrocidades ocorridas na saúde mental e dos pensamentos eugenistas que proliferaram nos Estados Unidos, Brasil e encontrou sua maior expressão com os nazistas.
Ora, a ciência está com o rabo entre as pernas, ajoelha-se ao poder político e econômico, é revisionada, é questionada, é desdenhada. Desprezo hoje potencializado pelas redes sociais, suas fake news, pseudossaberes, opiniões sem base informacional sólida e validada. Política, economia e medicina agora são determinantes para o destino da educação neste ano. Pobre educação.
Primeiro, preciso dividir algo: é muito estranho para mim que a educação não seja serviço essencial. Na verdade, é muito duro ouvir isso. Corta em mim, conviver com estar do lado de lá do muro da essencialidade.
É compreensível no entanto, que aglomeramos pessoas, interagimos com centenas de pessoas durante o dia na escola: educação é vida! Aglomerar nesse momento, não é bom. Nada bom. Há um vírus em circulação. Um vírus que provoca a morte entre 1 a 4% dos contaminados, segundo os dados.
Se colocarmos 2% de mortalidade, estamos falando em uma morte a cada 50 pessoas contaminadas. Nessa conta, poderíamos ter milhões de brasileiros mortos. Nunca esqueceremos do que já está acontecendo, mas a tragédia poderia ser maior ainda. Não duvidemos de que estamos diante de algo sério e sem precedentes na história recente.
Voltar para as salas de aula em meio à pandemia significará muitos desafios. Precisamos evitar aglomerações, evitar contato proximal entre as pessoas – alunos, professores, pais, comunidade escolar.
Teremos que desenvolver soluções como dividir espaços, dividir grupos de alunos, fazer mini-escolas dentro da mesma escola, criar “bubbles” como os ingleses estão fazendo, ou rodízios de alunos como propõe outros.
Tais logísticas quase nunca são simples – mais possíveis.
Tudo isso para reduzir contato, para assegurar o distanciamento social: o desafio de estar juntos e separados. Além disso: limpar, limpar, limpar.
Conscientizar todos os alunos, incluindo os menores, sobre a necessidade de uma etiqueta sanitária amplamente respeitada para desenvolver autocuidado e heterocuidado.
É certo de que a lógica é conhecida: quanto mais contatos, mais chances de transmissão, mais adoecimentos, mais gravidade de casos, mais óbitos. Todos minimamente letrados em ciência, entendemos. Quantos desafios!
Outra pergunta: se as escolas abrirem, os alunos virão? As medidas de biossegurança anunciadas são tranquilizadoras? As famílias enviariam seus filhos para a escola em meio à pandemia?
Tive acesso a várias pesquisas, sob forma de enquete para as famílias. O percentual de famílias que desejam que as aulas voltem a ser presenciais variou entre 15 a 60%. O índice parece maior nas escolas privadas. Ao conversar individualmente com muitas delas, há muitas que recusam a volta peremptoriamente, mas também há muitas famílias que entendem que a hora chegou. Mais desafios!
Há numerosas famílias que condicionam inegociavelmente a existência de uma vacina para que seus filhos voltem a frequentar presencialmente as escolas.
Há alguns pesquisadores e autoridades que dizem que ela surgirá ainda este ano.
Os dados anteriores, entretanto, não oferecem tal otimismo.
A vacina contra a caxumba foi a mais rápida vacina desenvolvida até hoje e demorou quatro anos para estar disponível. A vacina contra H1N1 foi bem mais rápida mas o vírus se tratava de uma variante do influenza (vírus da gripe, para a qual já existia vacina). Desenvolver uma vacina não é simples e não é diretamente proporcional à vontade geral, aos recursos investidos e ao número de centros em pesquisa envolvidos. Ela deve apresentar uma eficácia alta e comprovadamente promovedora de uma imunidade duradoura. Mais desafios!
Aprovada, a vacina deverá ainda ser desenvolvida em larga escala (bilhões de doses). Nós conseguiremos! Mas quando? Enquanto isso, que pode demorar meses (anos?), manteremos a escola fechada? Poderíamos manter fechadas sim, como até agora, mas com ensino remoto… Mas aí temos a realidade brasileira sobre nossas escolas…
A realidade educacional brasileira e o dualismo (ensino público x ensino privado) que vivemos na nossa escola são ingredientes que pioram a tomada de decisão única. O ensino remoto foi opção até aqui e pode ser por mais um tempo, é verdade. Mas o ensino remoto não foi opção até aqui em muitos casos, particularmente na escola pública. DAdos mostram que 39% dos alunos da escola pública não tem acesso digital adequado.
Além disso, temos a questão de resumir o ensino ao digital. Sou um entusiasta da educação mediada por tecnologia como ensino híbrido complementar, mas não como estritamente digital – o e-learning. Na educação básica, precisamos de atingir competências socioemocionais que não são muito afeiçoadas à distância e ao virtual. O tempo passa e assevera a descontinuidade de aprendizagens, de socializações, de interatividade com um diálogo aumentado proporcionado no ambiente coletivo da escola, mediado pelo professor. Revela-se e assevera-se progressivamente o espaço monumental entre a rede privada e a rede pública.
O tempo passa e os casos de COVID-19 aumentam. Já são mais de 150 dias de pandemia no Brasil. Em outros países, em 75 dias tudo estava normalizado. Aqui, os erros iniciais no controle da pandemia aparecem. A falta de uma resposta organizada agravou o estado de saúde do país. O governo central pouco fez, muitas das vezes confundiu. Os governos regionais tateiam soluções usando e revisando decretos, intempestivamente. Múltiplas decisões absolutamente descoordenadas a ponto de termos recentemente um shopping metade aberto e metade fechado no interior de São Paulo porque estava em municípios diferentes. Vergonhoso, insano, absurdo. Apertem os cintos porque não temos pilotos! Ou temos muitos, cada um puxando a nave Brasil para qualquer lado. Difícil de chegar em algum lugar assim…
Diante desse cenário, é hora de reabrir as escolas? Se eu pudesse dar um conselho, eu daria. Esperemos mais um pouco em casa.
Esperemos a curva de novos casos diminuir e permanecer em decréscimo claramente. Vamos nos preparar para a escola voltar mas primeiro sufoquemos a transmissão. Sensivelmente reduzindo a transmissão, voltamos.
Já presencialmente nas escolas, torçamos para um medicamento eficaz e validado por amplas pesquisas, torçamos pela vacina.
Precisamos cooperar e entender que esperar também é um exercício de espírito importante, como avisado por Chico Buarque na eterna canção sobre o Pedro Pedreiro:
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento para o mês que vem
Esperando um filho pra esperar também,
Esperando a festa
Esperando a sorte
Esperando a morte
Esperando o norte
Embora o Pedro de Chico só espera, ele também nos ensina. Se Chico, inteligente, “brinca” com a esperança e a desesperança durante a canção, a canção também nos inspira, nos remete à reflexão. Tenhamos esperança em dias melhores. Saibamos esperar.
Nem a COVID-19 acabou, nem a educação pode parar. Educação é serviço essencial. Mas esperemos mais um pouco.
É quase hora de abrir as escolas.
Marcello Lasneaux
professor, palestrante, Mestre em Bioética, especialista em educação inclusiva e gestão escolar, doutorando em Educação