20.5 C
Brasília
sábado, abril 20, 2024

Entre palmas e panelas

Date:

Share post:

Entre palmas e panelas

Eu esperava um pouco mais de silêncio nessa quarentena. Se era para ficar em casa, então que tivéssemos menos poluição auditiva e pudéssemos ouvir os arrulhos da natureza com maior tranquilidade.

Mas o pessoal da obra aqui ao lado não ligou para essa ideia. A construção civil não parou; as retroescavadeiras e os tratores estão bem ali, à vista da janela, compondo uma sinfonia de ruídos para embalar o meu teletrabalho.

Quando a noite cai, eu esperava que pelo menos respeitassem o recolhimento familiar. Mas há um fenômeno frequente nessa quarentena. Um tal de palmas batendo num dia, panelas tilintando no outro, panelaços num dia, aplausos no outro, e isso se repetindo dia a dia, de modo que eu já não entendo o propósito de cada manifestação e fico apenas com o barulho a me atrapalhar a noite.

A primeira vez eu acompanhei. Era um discurso do presidente. O tilintar das panelas foi ruidoso e colérico, como se alguns dos vizinhos, desprezando por anos o som e o valor social das panelas, súbito despertassem para a alegria terapêutica que há em bater uma panela em protesto político. Mas logo se seguiu uma guerra na vizinhança. Panelas a favor, panelas contra, gritos de uma janela, respostas desaforadas de outra e um grande barulho aqui em casa.

Depois dessa guerra a paz foi celebrada com aplausos de solidariedade. Torcida única: palmas para os profissionais da saúde. Mas depois a coisa ficou confusa.

Panelaços à tarde, no meio da noite, no fim da noite. Palmas aqui e acolá. Gritos esparsos. Em suma, uma poluição auditiva. Os gritos se deram mais para o fim da noite. Achei que pediam impeachment. Fui para a varanda e aprumei os ouvidos – era Fora Manu. Ou seria Fica Babu? Não sei, mas esses gritos se repetiram quarentena afora.

Outro dia ouvimos palmas. Eu já estava confuso. O calendário já não tem tanta serventia. Esquecemos dos dias da semana, quanto mais do mês. Quanto mais lembrar do calendário das palmas e dos panelaços.

Minha esposa falou que era para os profissionais de saúde. Duvidei, esse tinha sido no mês passado e não ouvi que iriam repetir. Então esse era o de homenagem às mães, ela falou. Mas dia das mães é só em maio, será que não era o aniversário da Sofia? Esse foi semana passada, me lembrou ela.

É verdade. Semana passada fomos à varanda bater palmas e cantar parabéns para a Sofia, vizinha aqui de cima. Alguns vizinhos se uniram à festa, bem como algumas amigas que ficaram lá embaixo do bloco.

Enfim me lembrei da data: era 21 de abril. Claro, aquele era o aplauso do aniversário de Brasília. Como esquecer de bater palmas à nossa cidade, dona desse céu magnífico.

Aliás, dias atrás eu quis bater palmas para o pôr do sol. Estava esplendoroso. O outono/inverno vai deixando o céu com uma circunspecção tão agradável que naquele dia o sol parecia desmanchar-se em uma vermelhidão tão bonita que me levou às palmas. Como estamos vivendo entre palmas e panelas, tive a sorte de ter sido acompanhado por duas vizinhas, que saíram às janelas aplaudindo e aplaudindo, mesmo sem saber o quê.

Mas eu falava do silêncio. Sim, o silêncio que eu almejava como um adorno da quarentena e que foi perdido entre essas algazarras de janela. E como se não bastasse, hoje à noite ainda tem live, e live sertaneja, e o pessoal da vizinhança acha que tem de cantar alto, na janela, para compensar a solidão da sala.

Pensei em organizar um cronograma do barulho: primeiro palmas, depois panelas e em seguida as cantorias das lives. Mas onde encaixar os gritos? Melhor cada qual fazer, de sua janela, o som que lhe convier, na hora que achar mais conveniente.

Rodrigo Bedritichuk é brasiliense, servidor público, pai de duas meninas e autor do livro de crônicas Não Ditos Populares

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

publicidade

Related articles

Grupo Fujioka comemora 60 anos de uma história entrelaçada com a nossa capital

Oferecendo serviços de fotografia, a marca chegou a Brasília em 1979. O estúdio se tornou um ponto de...

Faces de um velho punk

É, de certa forma, um caleidoscópio de memórias calhordas, embora a memória de Gilberto esteja indo pras cucuias. Mas...

*LIDE BRASÍLIA RECEBE DIRETOR-PRESIDENTE DA NEOENERGIA BRASÍLIA E CEO DA EMPRESA NO PAÍS*

O diretor-presidente da Neoenergia Brasília, Frederico Candian, anunciou investimentos da ordem de R$ 1,4 bilhão até 2028 na...

Tai Chi em Brasília: Cinco Décadas de Saúde e Harmonia com o Mestre Moo Shong Woo

Desde 1974, o legado do Grão Mestre transforma vidas e fortalece a comunidade com práticas de bem-estar e...