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sexta-feira, abril 26, 2024

Mudaram as estações, nada mudou

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Mudaram as estações, nada mudou

Rubem Braga, chamado por alguns de “fiscal da primavera”, gostava de observar com seu olhar perspicaz quando as estações mudavam. Certa vez, disse que o outono invadira o bonde em que andava na altura da Rua Marquês de Abrantes, sob a forma de uma folha seca que lhe batera na cara.

Braga andava muito pelo Rio – no sentido literal, de andar a pé mesmo. Na verdade, todos andavam muito pelo Rio, pois estamos falando da década de 1930, quando ainda havia bondes e quando o cronista registrou o início do outono na antiga capital. Quase uma centena de anos depois do relato de Rubem Braga, cumpre admitir que é quase impossível observar uma lua cheia dentro de um carro ou dentro de um trabalho ou na pressa do nosso século, quiçá a chegada de uma estação.

Mas deu-se o caso que, com a fixidez proporcionada pelo teletrabalho, a rua do lado de fora começou a ser apreciada com olhar mais detido. Aliás, uma das vantagens de estar em casa, em confinamento, é poder observar o movimento vagaroso da natureza: o crescimento firme mas imperceptível do pé de manga no jardim, o avanço diário das nuvens e a mudança na tonalidade do céu.

Pois às cinco e cinquenta e três da tarde da última terça-feira, dia onze de agosto, soprou uma brisa tépida vinda do oeste. O pôr do sol prometia se alongar para além das seis, com uma claridade entusiasmante. Essa massa de ar quente fez um leve cafuné na copa das árvores; agitadas, essas balançaram com certa timidez e graça, rumorejando no cicio de suas folhas.

A grama foi penteada para o lado com a lufada; um pó fino, quase invisível, subiu enquanto o ar passava, embaciando os olhos. Muitos não repararam, e pensaram ser o lusco-fusco do horário desbotando as cores do chão em tonalidades cinzentas. Era, na verdade, o último suspiro da relva. Ali a grama entregava seu espírito, que subia aos ares, aguardando, até a próxima chuva, a volta da sua cor.

A mãe preocupada sentiu o vento nas costas e já abria a bolsa para pegar o casaco da filha, quando, a meio do caminho, reparou que o ar era quente, não frio como nos últimos meses. Deixou a menina andar de vestido, confortável com a chegada da noite. Um pai pediu as horas, quando eu informei: cinco e cinquenta e três. Diante do anúncio do horário, ele e mais alguns se mostraram surpresos com o calor, a luz e com um sentimento de mudança que vinha com o vento. Foi quando me dei conta de que ali, àquela hora, a estação havia mudado.

O frio avançou impropriamente até agosto. O inverno se estendeu um pouco mais, preguiçoso debaixo de um cobertor, não querendo sair. Foi expulso pelo vento quente que soprou na última terça-feira. Pois esse vento passeou pela cidade anunciando, solenemente, o início da seca. Chegamos, afinal, na estação da seca!

A lenda diz que, naquela hora exata, três pessoas registraram o nariz sangrando e um repórter do tempo disse que a umidade do ar iria ficar bem baixa naquela tarde, mas talvez seja exagero. E também não precisamos de outras provas para a chegada da seca além desse triunfo do vento quente pela cidade na última terça-feira.

A estação mudou. De resto, nada mudou: as escolas continuam fechadas, os shoppings abertos, o coronavírus continua matando, as pessoas discutem sobre vacinas e remédios e a quarentena segue ano adentro.

Rodrigo Bedritichuk é brasiliense, servidor público, pai de duas meninas e autor do livro de crônicas Não Ditos Populares

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