O cisne negro veio de caminhão
Por Fausto Freire
Dizem que a posição antípoda do Brasil está situada, majoritariamente, no Oceano Pacífico, entre as Filipinas e o Japão. Antípoda é a localização geográfica diametralmente oposta a outra. Eu, cá, tenho minhas dúvidas. Para mim, o ponto mais distante do Brasil está situado em Brasília. Aqui, o aconchego do salário certo e generoso, no fim do mês, faz do burocrata de plantão um ser seguro de si mesmo e alheio aos burburinhos alhures. É como um batalhão de Marias Antonietas surpresas pelo clamor da plebe, diante da falta de pão: “Por que não comem brioche?” E eles nem sequer suspeitam que, ato contínuo a essa indagação, ergue-se a guilhotina…
A paralisação do transporte rodoviário por todas as estradas brasileiras era um desastre que não entrava nos cálculos de probabilidade. Mas ele estava latente. A ilusória imagem criada pelo governo Dilma, após a vitória nas eleições de 2013, de que o país voltaria a crescer e que a crise havia ficado para trás, foi o pano de fundo, a rotunda, do último ato da tragédia econômica, política e social que nocauteou o Brasil. Econômica, política e social, nesta ordem, se sucederam os atos do drama, cuja encenação se manteve além do impeachment.
Uma certa euforia, produzida por uma injeção de adrenalina no coração do Brasil, levou uma parcela dos agentes econômicos a investir e contrair dívidas para reforçar seus investimentos. Foi o caso do setor de transportes, encorajado pela redução de IPI e facilidades de crédito. O BNDES comandava a festa, distribuindo vantagens, principalmente para os amigos da rainha de copas.
Michel Temer é apenas mais um protagonista da mesma comédia. Um coadjuvante de pouca monta que roubou a cena, literalmente.
Encastelado no Planalto Central, a milhares de quilômetros de qualquer manifestação da atividade produtiva, Temer iniciou sua jornada em busca de vitórias e aplausos. Cercado pelo encorajamento dos bajuladores, até o santo peca, e Temer não é exatamente o que se possa chamar de santo.
Suas investidas na direção do sucesso foram suficientes apenas para salvar sua pele das duas tentativas de apeá-lo do trono. O tecido político do Congresso, sujo e esgarçado, foi frágil demais para sustentar um projeto de renovação institucional. A frustração diante das reformas, vitais para o país, levou ao rebaixamento da credibilidade nacional junto às agências de classificação de risco.
Temer passou a gerenciar as pequenas causas. Remendar ministérios; investir contra o caos da segurança pública, no Rio de Janeiro; transferir refugiados econômicos da Venezuela, de Roraima para outros estados; fazer pequenos ajustes na educação nacional… nada capaz de elevar a hipotermia de seus índices de aprovação, perante a opinião pública.
Duas façanhas, no entanto, animavam o Presidente: a salvação da Petrobras e os números do Banco Central. De fato, a Petrobras, que já era considerada pelo mercado internacional como uma empresa falida, conseguiu se reerguer e alçar voo. Claro que seu voo não foi o de um condor. Foi apenas um voo com dor. Deixou plumas e muita matéria orgânica para trás, mas foi melhor que o óbito. O Banco Central, por sua vez, conteve a inflação e reduziu a taxa de juros. Entretanto, o preço foi alto. A gangorra dos preços, para manter a inflação baixa, pendeu pelo peso de mais de 13 milhões de desempregados.
A maior taxa de desemprego da história, manteve um contingente de famílias impedidas de consumir, levou insegurança aos que mantiveram seus empregos, achatando salários e reduzindo o consumo a níveis críticos. O comércio e os serviços viram-se impedidos de elevar preços ou, mesmo, corrigir as perdas com a inflação. Esta equação manteve os preços artificialmente contidos.
O mercado é inimigo de artificialidades, por muito bem maquiadas que elas se apresentem. Embora o comércio não tivesse alternativa de crescimento, nem os serviços, de expandir seus horizontes, a inflação baixa camuflava uma bomba cujo potencial explosivo foi ganhando tanto mais força, quanto mais comprimido ele era mantido.
A parcela empregada da população economicamente ativa, foi mantida sob a ameaça de perda iminente de seu emprego, o que impede qualquer cristão, ou ateu, de reivindicar melhoria salarial.
Para um burocrata brasiliense, esse é o melhor dos mundos. Mas esqueceram de combinar com os caminhoneiros. Tanto para autônomos, quanto para empresários, a situação do setor se tornou insustentável. O investimento feito, em 2014, na renovação da frota, embutiu juros pesados. No quadro utópico do crescimento artificial, esses juros se diluiriam no tempo, mas quando a realidade se impôs, a euforia virou ressaca. E a realidade foi cruel: comércio e serviços achatados levaram à redução dos fretes. Corrigir as perdas se tornou impraticável em face de um mercado paralisado. Nessa altura entra a cereja do bolo. A Petrobras passa a corrigir seus preços segundo as flutuações internacionais do dólar e do petróleo, diariamente.
Ora, não é possível manter os preços congelados artificialmente, como fez o governo do PT, não é mesmo? Isso é verdade, mas a forma foi totalmente equivocada. Resulta que os preços no mercado internacional flutuam, tanto do dólar, quanto do petróleo. Porém, essas variações não são simultâneas, nem simétricas. Elas flutuam para cima e para baixo, de forma independente. Já as correções diárias, ditadas pela Petrobras, acompanham essas variações, mas seu resultado no mercado produziu um efeito perverso.
Quando a Estatal eleva o combustível, o novo valor é aplicado imediatamente no posto, antes mesmo da compra do novo produto. Já quando ele cai, ainda que de forma modesta, essa variação não se aplica na ponta. O processo que vai da Petrobras até a bomba, é mediado por várias etapas e todas aplicam as correções para cima, mas, por segurança, não reduzem na mesma proporção. Deste modo, as correções se transformam numa linha de crescimento contínuo.
Não haveria nenhuma perda para a Petrobras, se ela praticasse suas adequações de preço, por períodos mas dilatados. Da mesma forma, ela obteria a segurança diante das perdas. As variações diárias no preço dos combustíveis, tornaram-se um fator de imprevisibilidade insuportável para o transporte. Operando com margens próximas de zero, o risco das variações em períodos muito curtos impedem a empresa de um mínimo de planejamento, o que é totalmente impraticável. Já o transportador autônomo é ainda mas vulnerável, pois não dispõe de capital de giro para amortecer o choque das perdas temporárias.
Os caminhoneiros já viveram momentos de estresse, mas nunca algo como o que ocorre hoje. Ao longo dos anos, o setor aprendeu, com seus próprios erros, como fazer uma paralisação bem sucedida. Hoje, o chofer de caminhão sabe exatamente o que é preciso, em termos de logística, para sobreviver durante um longo período, ameaçado pela repressão policial e até militar. De qualquer forma, o caminhoneiro não tem alternativa. Sua sobrevivência está comprometida e nenhuma ameaça será pior do que a própria realidade atual.
Por outro lado, as ameaças do governo podem impedir que os caminhoneiros obstruam as estradas, mas nada pode obrigá-los a continuar a transportar cargas amargando prejuízos. Essa constatação é demasiado abstrata para um burocrata brasiliense.
A reação explosiva do transporte rodoviário foi o que Nassim Nicholas Taleb chama de Cisne Negro (The Black Swan). Cisnes Negros são eventos que não entram nos cálculos de probabilidade, mas, caso ocorram, podem produzir impactos extremamente elevados. É um bicho raríssimo, na natureza. Uma espécie de outlier difícil de ser observado, mas que pode aparecer um dia e, quando isso acontece, os efeitos são desconcertantes. A imagem do Cisne Negro foi criada pelo filósofo escocês David Hume, nos anos 1700, justamente para questionar o “Pensamento Indutivo”, ou seja, o pensamento que generaliza um fenômeno, ou uma conclusão a partir de uma experiência singular.
O governo Temer não avaliou corretamente o peso deste Cisne Negro. Menosprezou o alcance e a extensão do potencial estrago decorrente da paralisação das estradas. Induziu, erroneamente, que a categoria dos transportadores não representavam uma verdadeira ameaça. Suas primeiras interlocuções com os representantes do setor foram totalmente equivocadas. A mise-en-scène televisiva de Padilha, com os motoristas chapa-branca, produziu efeito contrário ao desejado. A encenação, que pretendeu jogar a opinião pública contra o setor, foi desastrosa. O governo foi incapaz de compreender a situação caótica pela qual o setor atravessa e o quão longe eles poderiam chegar.
Os pronunciamentos do Presidente da República só acrescentaram desgaste à sua imagem desbotada. Os efeitos do Cisne Negro não vão cessar, mesmo após a liberação das estradas. Tudo conspira contra a permanência de Temer no Planalto. O fato de faltarem poucos meses para as eleições, não é uma garantia de vitória do cisne branco sobre o cisne negro.