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quarta-feira, novembro 20, 2024

Órfãos de pais vivos: conheça a história dos filhos separados de pais com hanseníase

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DPU luta por indenização às vítimas da política sanitária que destruiu famílias no século XX

Por décadas, pessoas com hanseníase foram isoladas do resto da sociedade no Brasil. Elas eram excluídas do convívio social e condenadas ao confinamento em hospitais colônias.

Há anos a Defensoria Pública da União (DPU) busca defender o direito das pessoas que foram afastadas da família por causa dessa política sanitarista governamental. E neste último domingo de janeiro (28), data em que se comemora o Dia Nacional de Combate e Prevenção da Hanseníase no Brasil e o Dia Mundial da Hanseníase, a DPU traz uma história que escancara algumas das cicatrizes profundas que ficaram após a separação traumática dos pais.

Privadas do amor, do afeto e do convívio com a família, os filhos das pessoas que tinham hanseníase no século passado cresceram sem saber o que é ter parentes presentes. Helena Bueno, 62 anos, é uma dessas vítimas do Estado.

Ela é uma das assistidas da DPU e conta que nunca conheceu mãe, pai, avós nem tios. “Passei por preventórios, minha mãe e meu pai ficaram doentes e não puderam me criar. Comi o pão que o diabo amassou na casa dos outros”, desabafa.

Helena foi entregue ao Educandário Santa Terezinha, localizado em São Paulo, no dia em que nasceu. Tirando o momento do parto, nunca teve contato com a mãe que, assim como o pai, já havia morrido quando Helena atingiu a maioridade e teve, pela primeira vez, a oportunidade de conhecer sua história. Anos depois, Helena descobriu que a mãe nunca nem soube de seu paradeiro.

“Tudo bem, ela tinha doença. Mas isso não se faz com uma mãe ou filha”, enfatiza emocionada. “Eu lembro que o preventório ficava no alto, olhava e via as coisas lá embaixo, mas não tinha essa ideia de pai, mãe, família. Lá era meu mundo. Eu não sabia que existia outro mundo fora”, disse.

No educandário viveu até os 18 anos, mas as lembranças seguem com ela até hoje. Essa política de isolamento compulsório das pessoas doentes com hanseníase vigorou no país até 1980. Em 2007, a Lei 11.520 estabeleceu o pagamento de uma pensão vitalícia aos ex-pacientes, no valor de R$ 750,00.

No entanto, os filhos órfãos de pais vivos, também vítimas dessa decisão do Estado, não haviam sido indenizados e batalharam por justiça. Até que, em novembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 3023/2022, que sucede à Lei de 2007 e institui indenização em formato de pensão vitalícia a eles.

DPU luta por direitos humanos

Nesse período, a Defensoria Pública da União buscou defender o direito das pessoas que foram afastadas da família por causa da política sanitarista governamental. Junto com o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo que a indenização por parte do estado seja considerada imprescritível nesses casos.

Isso porque hoje no Brasil vigora uma regra que diz que “as dívidas passivas e qualquer direito ou ação contra a União, estados e municípios prescrevem em 5 anos contados da data no ato ou do fato do qual se originaram”.

O defensor público federal Gustavo Zortea, que atua no caso, conta que o pleito da DPU é justamente para retirar a situação dos filhos separados das pessoas atingidas pela hanseníase dessa regra geral. “Nós entendemos que o que essas pessoas sofreram não é uma violação comum. A pretensão ressuscitaria que elas têm contra o estado, lato sensu, não é comum. É uma pretensão que surge de uma política pública engendrada pelo estado de maneira sistemática e altamente violadora de direitos humanos”, explica.

O argumento da DPU na Suprema Corte é que quando a política pública, que devastou milhares de vidas, prescreveu as vítimas estavam em situação de vulnerabilidade, muitas vezes eram crianças, e por isso não recorreram à justiça.

O defensor força que mesmo com a Lei 3023/2022, a DPU continuará a defender os direitos desses filhos de pais órfãos que possam vir a precisar de orientação jurídica.

Um pouco mais dessa história

Helena nasceu em 1961, no município de Itu, São Paulo. Recém-nascida, foi levada para a capital, que fica a aproximadamente duas horas de viagem. “Me trouxeram no mesmo dia para São Paulo, imagine a dor da minha mãe”, reflete.

A saudade do que poderia ter vivido caso tivesse conhecido a mãe acompanha Helena desde que ela entendeu o conceito de família e percebeu que isso foi tirado dela. No educandário, viveu por anos durante a infância e o início da adolescência, mas as lembranças não são boas. Depois, passou por diversas casas onde serviu de empregada doméstica não remunerada e teve experiências traumáticas. De acordo com ela, olhar para essa parte da vida traz muita dor.

Sendo mal tratada constantemente, Helena decidiu fugir de uma dessas casas e, por ficar escondida, perdeu o contato com a irmã por alguns anos. Só reatou o laço ao fazer 18 anos. Também foi nessa época que partiu em busca do paradeiro da mãe. Mas chegou tarde demais.

Quando finalmente descobriu onde ela estava, a mãe havia morrido há uma semana. Para as filhas deixou uma bíblia. “Percebi que dentro da bíblia que existe uma passagem “filho meu, filho meu, filho meu” que está grifada. É só essa parte que está grifada é marcada”, diz se agarrando nas palavras como a um carinho que não recebeu na infância. “Eu sou mãe de um menino de 30 anos. Quando ele nasceu meu maior desejo era amamentar ele. Eu fico imaginando o que minha mãe passou”, lamenta.

Da família Helena só conheceu a irmã, que também morava no educandário. “Eu não via a hora de completar 18 anos e ser livre. Era meu maior sonho”, lembra.

Afastada da família, a vida de Helena foi difícil. As lembranças mais antigas são de castigos. “Uma vez colocaram as meninas viradas para a parede, nuas com as mãos para o alto e apanhamos com vara de marmelo”, contou. “Eu também lembro que estava saindo da escola toda feliz e disse “amanhã não vai ter aula”, aí me empurraram e eu caí no pedregulho de joelho, eu tenho marca. Até hoje eu lembro da dor”, disse. “Eu lembro de outro: a mulher apertava a unha em cima da minha cutícula. Fiz isso em todos os meus dedos e eu tive muitas feridas altas”.

Hoje Helena é casada, mora em São Paulo e tem um filho. E assim como milhares de crianças que foram separadas dos pais e viveram como órfãos, luta por uma indenização do estado. É assistida da DPU.

Parceiro de luta

O Morhan, que ingressou com a DPU na ação que tramita no Supremo, ajuda a identificar vítimas da segregação imposta aos ex-doentes e filhos. Sua missão é possibilitar que a hanseníase seja compreendida na sociedade como uma doença normal, com tratamento e cura, eliminando assim o preconceito e estigma em torno dela.

O coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio, esclarece que estabelecer uma indenização seria uma espécie de pedido de desculpas da sociedade, apesar de não ser suficiente para suprir o sofrimento dessas pessoas.

“A gente está lidando com um crime de direitos humanos. São pessoas que tem medo do escuro, por exemplo, porque foram separadas dos pais ao nascer, levadas a preventórios, sofreram diversos abusos, inclusive, questões relacionadas a tortura”, elucida. “São crimes que não prescrevem. O mal que foi feito a essas pessoas não pode ser comparado a batidas de carros”, reforça.

A hanseníase

Trata-se de uma doença infecciosa causada pelo Mycobacterium leprae, que dá sintomas na pele e afeta os nervos das extremidades do corpo. É transmissível por meio da respiração, mas tem cura. Ninguém que tenha a doença precisa se afastar da sociedade, nem deixar de trabalhar ou ficar perto de sua família.

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