19.5 C
Brasília
sábado, maio 4, 2024

Segredos dos Cavalcantes

Date:

Share post:

Por: Luiz Humberto Del’Isola
Fotos : Arquivo Pessoal e Nubia Paula

Quando o Edson me procurou , pedindo que eu rabiscasse algumas mal traçadas linhas para o seu novo Portal, 61brasilia.com, argumentei (por preguiça, confesso…) que não valia a apena, que ninguém em estado normal iria gastar tempo lendo mal traçadas escriba velho como este que vos escreve, e outras desculpas esfarrapadas que fui inventando na hora. Mas o Edson Crisóstomo é insistente, amigas e amigos… Como é insistente o Edson! Não é de estranhar que seja tinhoso, o meu gordinho predileto (que é a assim que o chamo). Não fora ele a insistência que é, não seria o inventor/editor de tantas publicações que marcaram a vida e a cultura de tantos e tantos de nós, candangos de boa e legítima cepa, brasilienses que amamos a cidade/capital. Plano Brasília, Kids, Pecado Capital, Gente … Para todas elas rabisquei mal traçadas linhas, e as gostei de rabiscar. O meu gordinho predileto merecia, pois, que eu largasse a preguiça de lado e que fosse catar milho no teclado.

Quando concordei em botar cérebro e dedos no batente, perguntei sobre o que é que deveria rabiscar. Sobre o Ki-Filé, o restaurante, respondeu-me. Aí, leitora e leitor, aí acabou-se preguiça, sumiram os achaques de velho reumático e caquético. Aí senti-me remoçado, mais jovem uns quarenta anos ( o que não me faz muito jovem, múmia antiga que sou). É que o Ki-Filé não é só um restaurante, entre os tantos que há por aqui e acolá desta cidade tão jovem e já tão imensa. O Ki-Filé, para mim, nem é o Ki-Filé: ainda o chamo pelo nome antigo, nome de boteco pé sujo que foi um dia: eu só chamo de Cavalcante. E vou além: é uma segunda casa. Lá redigi muitos discursos e artigos, ghost writer de profissão que sou. Muitas crônicas, alguns trechos de livros, muitas tertúlias, muitos porres e alguns amores, discussões políticas – quando fazer e falar de política era coisa elevada, não a estupidez de hoje – tudo isso vivi sentado em uma mesa do Cavaco (outro apelido que dou ao assim chamado Ki-Filé).

Conheci o Cavalcante quando ele foi inaugurado, do outro lado da rua, onde hoje há aquela imensa loja da Só Reparos. Aliás, não se pode falar de um sem falar do outro. O boteco era pequeno, e a Só Reparos também era pequena. Aliás, pequeno também – só de estatura – é o Miguel, um dos sócios da hoje imensa rede de lojas. Pequeno só de estatura, insisto, porque foi um beque central gigante, quando jogava futebol no Country Club. Certo ano, já distante na bruma do tempo, Miguel e eu formamos uma bela parelha de zaga que foi campeã do torneio interno daquela vetusta agremiação social. Sem a grandeza do Miguel, talvez não houvesse o Ki –Filé que conhecemos hoje, já que foi numa negociação entre as duas empresas que o boteco mudou de quadra, indo morar onde mora hoje.

Mas deixemos de lado a vida alheia e vamos ao que interessa. Falemos do restaurante, falemos de comeres e beberes, de torresmos e feijoadas de rabos e dobradinhas. Falemos de filés e de omeletes. Como são grandes os pratos do Cavalcante! Cada prato nutriria um exército, se por lá passassem exércitos, que não passam, Graças a Deus. Além de grandes, são bons. São muito bons, os pratos do Ki-Filé. Antes que algum leitor mais engraçadinho pense com os seus botões: “que anta, esse rabiscador… prato bom é de porcelana, e isto lá não há!”, vou explicando que é de conteúdo que falo, de continente não.

A história do Ki Filé é uma história de migrantes. Sim, de migrantes sim, que Raimundo e Anastácio, fundadores da casa, são cearenses. De Sobral. Repetiram a saga de milhares de conterrâneos cabeças chatas (espero não ser patrulhado pelo politicamente correto) que um belo dia vieram conquistar o Sul Maravilha. Raimundo veio antes, e de comida não sabia mais do que o trivial variado: farinha, rapadura, macaxeira e carne de sol. Raimundo nem veio para a capital cozinhar. Veio puxar traço de concreto, bater forma e subir fieira de tijolo. Sim, o grande chefe Raimundão foi peão de obra. Não por muito tempo, pois aí entra a história de outros imigrantes, esse de muito mais longínqua terra: da Toscana, na Itália. Aí entra a história de Mario e Emma Bonazzi.

Eduardo filho do Raimundo, e os irmãos Roberto e Ricardo filhos de Anastácio dão continuidade ao trabalho dos Pais.

Poucos devem se lembrar dos primeiros restaurantes de Brasília, daqueles nascidos em barracos de madeira e tocados a fogões de lenha. afinal, é história muito antiga, empoeirada pelo tempo. mas posso assegurar, leitor e leitora, que foram muitos e foram muito bons. Chez Willy, Adele, Fred´s, Kazebre, la Romanina, Roma…. quase todos eram de candangos europeus. Willy era austríaco, Fred era Suiço. Mario Bonazzi, Luigi brandi (do Roma), Gennaro e Vincenzo (do kazebre) eram italianos. Luigi Tartari, o renomado maitre, trabalhou na cidade livre, pilotando panelas do adele, que era da família Ricci… Mário e Emma Bonazzi criaram o Restaurante la Romanina, que funcionou por muitos e muitos anos na sqs 303. e foi ali que Raimundo abandonou martelo e pá e começou a aprender a arte da cozinha. isso foi por volta de 66. logo, logo chamou o irmão mais novo, Anastácio, que foi se juntar a ele no restaurante. ali o Cavalcante (sim, que é sobrenome dos dois, mas apenas o Anastácio ficou assim conhecido) aprendeu a ser garçom, a olhar o salão, a carregar pratos e bandejas. enquanto isso, Mario Bonazzi, generosamente, continuava a ensinar ao Raimundo o segredo de molhos e massas, de filés e carpaccios.

Quase vinte anos de alta cozinha transformaram o peão de obra em refinado cozinheiro. grande chefe raimundão, eu o chamava. quase vinte anos de pratos e bandejas, de clientes e de cachaceiros, transformaram anastácio em craque de salão, mestre de bandejas e toalhas, de guardanapos e taças, além de cobremanchas e contas espetadas.

em 1984, os irmãos tomaram coragem e abriram a sua própria casa, um legítimo pé sujo, boteco de ninguém botar defeito. Cerveja sempre gelada, pinga boa e pratos enormes, gargantuescos, pantagruélicos. Comida honesta, sem as frescurinhas de Nouvelle Cuisine e veganices de hoje em dia.

Feijoadas, rabadas, dobradinhas, cozidos… tudo o que sai da cozinha do cavalcante é uma delícia, garanto. sem falar dos filés, a cavalo ou a parmiggiana, razão do nome da casa. deu certo. tanto deu certo que, poucos anos depois, os irmãos atravessaram a rua e foram se instalar onde está o restaurante até hoje.

Atração imperdível da casa é a propria clientela. que fauna, leitor, que fauna! há atrações para todos os gostos. se quiser encontrar um sisudo juiz de direito, um rigoroso promotor de justiça, lá os há. está procurando um abastado comerciante, um capitão de indústria ou agiota de renome? fácil encontrar um exemplar às mesas do ki filé. professores da unb? de monte… alunas e alunos, idem. políticos, com mandato ou sem mandato, também os há. gente moça, gente velha. almirantes e brigadeiros, cientistas e jornalistas. há escritores e há poetas, há atletas e ex atletas, há os agradáveis e há os chatos. há os comuns e os nem tanto, há gente bela e há gente feia. bancários, dentistas e cabeleireiros, modelos e manequins, manicures tambem. um traço singular da casa: é um dos poucos locais onde as diferenças políticas não envenenam a conversa. ali bolsonaristas convivem civilizadamente com lulalivres, comunistas (os poucos que sobram) confraternizam com coxinhas. a esquerda convive com a direita na paz. de boa, brother. ninguém grita com ninguém por pensar de forma diversa um do outro. a clientela, por si só, já é motivo para frequentar o ki filé.

 

Os Cavalcante originais já abandonaram essa vidinha aqui em baixo, já subiram para outro lugar. lá em cima, Raimundo deve estar na cozinha, Anastácio no salão. este foi antes, contrariando a ordem natural das coisas: um acidente de carro – um valoroso opala, 6 cilindros – o levou, aos 53 anos de idade. isso foi em 2004. Raimundo ficou aqui por mais tempo. foi-se embora aos quase 70 de idade, dois anos atrás.

Hoje há três Cavalcantes à frente do ki filé: dois filhos do Anastácio, Roberto e Ricardo, e um do Raimundo, Eduardo. estão fazendo jus à tradição inaugurada pelos pais: comida boa, bebida honesta, preços decentes.

Para encerrar essas mal alinhavadas, agradecendo a paciência dos leitores que me suportaram até aqui, vai um comentário final: a generosidade de mario e emma bonazzi, a solidariedade do miguel da só reparos não cairam em terra ruim. ao contrário. raimundo e anastácio jamais negaram a qualquer de seus colaboradores apoio e estímulo. da mesma forma que aprenderam, ensinaram. que o diga o jarbas, o já famoso pardim. durante muitos anos garçon do ki filé, montou, bem ali do ladinho e com o apoio dos patrões e colegas, seu próprio negócio, que já vai se transformando também ele, em referencia de boteco na cidade.

Em tempo : não percam a feijoada das sextas, é mais que um evento; é um “happening”, um espetáculo de não se perder …

 

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

publicidade

Related articles

Mirage Circus apresenta tour 2024 em Goiânia

O ator Marcos Frota, anfitrião do Mirage Circus, apresenta o Gigante Brasileiro, na Arena Flamboyant, em junho. Com...

6 executivos indicam leituras para inspirar

É com foco inspiração que seis executivos de sucesso revelam suas obras literárias de cabeceira. Confira a lista...

Especial pets: dicas para iluminar a casa e promover o conforto visual dos bichinhos

Da mesma forma que os diferentes tipos de luzes interferem em nosso metabolismo e na nossa saúde, isso...

Nova York esportiva: um giro pelos estádios e arenas da cidade (e da vizinha New Jersey) que sediará a final da...

Conheça os grandiosos complexos que recebem multidões apaixonadas por modalidades como futebol americano, basquete, beisebol, hóquei, tênis e, claro, soccer, como...