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terça-feira, abril 23, 2024

Uma companheira para a quarentena

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Uma companheira para a quarentena

Ele não se lembrava se era terça ou quarta. Pegou o celular e conferiu. Quarta-feira! Hoje seria noite de futebol. Quinta era com o pessoal do trabalho, esticando a jornada em algum lugar. E sexta era dia de bar. Ah, como era bom recordar a vida antes disso tudo…

Enquanto refletia nas glórias passadas, viu que dois olhos estavam cravados em sua direção, e um sorriso leve, irônico, perpassava pelo rosto dela. Aquilo o inflamou novamente. Ele se levantou e saiu do cômodo, odiando aquele olhar invasivo. Já não podia nem mais se deliciar com as memórias pretéritas que ela aparecia com aquele olharzinho dissimulado que esquadrinhava a sua alma.

Ele era do tipo que não parava em casa. Direto do trabalho ou passando em casa para tomar um banho, sempre estava na rua. Raramente recusava algum convite, pois gostava mesmo de estar entre amigos e cercar-se de gente.

Por isso foi um choque esse negócio de quarentena. De repente, viu-se trancado em seu apartamento, sem poder desbravar a rua e devassar o mundo. Mesmo que quisesse – e com certeza ele aceitaria –, os convites haviam cessado. Não havia mais programas na agenda.

Na primeira noite, ao conferir a geladeira e a despensa e se dar conta de que devia fazer compras, ele seguiu para a sala e então reparou na presença dela, sentada ao sofá. Ora, ela sempre estivera ali, ainda que não fosse notada. Mas não fazia cara feia nem reclamava, e assim achou seu lugarzinho na casa e foi se ajeitando, vendo-o sair noite após noite.

Nessa primeira vez, eles se encararam por um bom tempo no sofá. Após o estranhamento, ele desatou a rir, quebrando o gelo entre ambos. Achou graça da situação e teve até piedade dela, por vê-la tão abandonada, coitada, e sempre o aguardando com diligência.

Nas semanas seguintes, se trataram cordialmente, cruzando-se a todo momento pela casa. À noite era quando havia maior interação. Sentavam-se ao sofá, ou na varanda, e ficavam longo tempo sem se incomodar com a presença um do outro. Foi dessa forma que cada qual passou a tentar viver no seu canto, sem prejudicar o espaço do outro.

Não tardou, porém, para que o clima azedasse. O fato é que ele começou a se enfadar dela. A convivência já não era mais pacífica como outrora, e ele passou a evitá-la o máximo que podia, uma vez que o tamanho modesto do apartamento tornava a tarefa mais custosa.

Sim, passou a reparar mais nela. Mas o que viu não foi nada agradável. Ela era feia, para falar a verdade. Mal-humorada, melancólica, afetada. Ele não sabia o que tinha feito para tê-la em sua casa, mas o fato é que não podiam continuar, aquilo era tóxico, um relacionamento abusivo. A presença dela o deixava mal, irascível, e sempre o fazia pensar em coisas desagradáveis – como na morte.

Tomou coragem: falou que o apartamento afinal era dele, e perguntou se ela não se importava em sair e procurar algo só para ela; ele até ajudava na mudança. Ela, contudo, foi irredutível.

Não sairia dali jamais, ambos eram inseparáveis. E se explicava dizendo que a situação era favorável aos dois, pois pelo menos agora, com uma pandemia, ele podia reparar na presença dela, e refletir no que havia feito daquela vida livre e agitada. E que ela era e seria para sempre a única companheira fiel a ele.

Ele quase entrou em desespero. Agora, parecia-lhe que até o olhar dela voejava como duas moscas a tirar a paz das suas memórias e pensamentos. Não via a hora de ganhar as ruas novamente e deixá-la.

Não queria a separação; resignou-se com o laço que os prendia. Mas queria vingar-se, deixando-a ali mesmo, abandonada, escondida, ignorada. Mas enquanto esse dia não chegava, os dois permaneciam assim, altercando-se a todo momento.

Ele, que morava sozinho, não esperava que sua quarentena fosse dominada pela presença dela. Ela chamava-se solidão, e não pretendia ir embora nunca mais.

Rodrigo Bedritichuk é brasiliense, servidor público, pai de duas meninas e autor do livro de crônicas Não Ditos Populares

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