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segunda-feira, maio 19, 2025

Uma faculdade e um bar

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Uma faculdade e um bar

Há serviços que se complementam e a mão invisível do mercado cuida de ajeitar para que os estabelecimentos fiquem próximos uns dos outros. Por exemplo, sempre perto de um cartório você vai encontrar uma copiadora. Sempre na saída de uma escola você vai achar um pipoqueiro.

E sempre perto de uma faculdade você vai encontrar… uma livraria? Não, um barzinho.

Isso, porque o universitário tem a imperiosa necessidade de mostrar para a sociedade que já tem dezoito anos (ou quase dezoito), que pode beber legalmente, que é independente dos pais, que é dono de si e que vai mudar o mundo a partir da mesa de um bar, e essas coisas todas.

Há muito tempo eu fazia faculdade, uma que ficava nas 900, e lá em frente, na W5, havia um barzinho pé sujo, famoso entre os alunos. Era o primeiro semestre. Era a primeira apresentação de seminário de uma severa professora.

Trabalho em grupo se resume a dividir o que cada um vai falar e na hora juntar tudo. Cada um fez sua apresentação em PowerPoint e mandou por email para um sujeito muito magro, vulgo Fininho, colocar tudo num arquivo só.

Cheguei para a aula, à noite, e notei meus companheiros em pânico. Achei que fosse nervosismo. Como eu também fazia outra faculdade, já detinha alguma experiência no ambiente universitário. Vi aqueles meninos de dezessete anos e cheguei, com meus vinte, quase com um ar paternal, tentando levantar o moral da tropa.

– Não tem jeito, o arquivo PowerPoint não está abrindo. Já era – disse um deles.

Para eles, sem PowerPoint, sem apresentação. Tentei animá-los mais uma vez. Tudo bem, pessoal, vamos fazer sem o PowerPoint. A gente dá conta. Mas cadê o resto do grupo?

– O Fininho já até desistiu. Fugiu. Foi para o bar.

Realmente o negócio estava ficando complicado. Sem o ppt tudo bem, mas com o desfalque de um integrante a coisa parecia desandar. Vá lá que o Fininho não fosse nenhum grande jurista tampouco um orador de destaque, mas ainda assim desfalcava o grupo. Ainda restavam eu e mais três.

Dois deles relutantes, falando que não eram capazes. Tentei ao máximo usar de argumentação e de discursos motivacionais, e me senti quase como um coach, apesar de coach ainda nem existir nessa época.

Os dois me garantiram que ficariam até o fim. Mas a visão da professora entrando na sala, aquele coque quase como que esganando o cabelo, o rosto com rugas de expressão, o andar dominador, o óculos de aro pesado – aquilo tudo foi demais para eles…

Senti uma movimentação perto da porta, e quando olhei para trás vislumbrei aqueles dois antigos companheiros abandonando a sala, fugindo para o bar.

Sobramos só eu e outro valente. Ele cogitou desistir, mas apelei para sua dignidade, ao que ele acedeu. Apresentamos só nós dois o seminário. Fizemos uma apresentação sem PowerPoint, trôpega, tentando colar os cacos dos integrantes que faltaram. Apesar dos pesares, demos consistência e início, meio e fim ao tema tratado.

A turma, que sabia do paradeiro do restante do grupo no bar, aplaudiu efusiva, em solidariedade à nossa situação. Foram as palmas mais fortes e prolongadas que já recebi na vida.

Mas a aclamação estudantil não moveu o coração da professora, que nem sequer esboçou piedade. Pelo contrário, nos humilhou com gosto. Trabalho porco, sem esmero, sem cuidado, não condigna com o porte das ciências jurídicas, mas propícia ao bar mais sujo da esquina…

Era isso. Aquela apresentação estava destinada de antemão a ser realizada num bar, e não na sala de aula. Voltando para casa de carro, passei pelo bar e avistei da janela Fininho e os dois traidores sentados à mesa, bebendo, rindo e debatendo, em tom de deboche, sobre a teoria tridimensional do direito…

 

Rodrigo Bedritichuk é brasiliense, servidor público, pai de duas meninas e autor do livro de crônicas Não Ditos Populares

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