Eram os 19 dias de março de 2020 quando saí de Brasília, com a velha esposa que me tolera há quarto de século, e vim para uma casa que temos em Porto Burity, às margens do rio Paracatu.
Nove meses passados, continuamos aqui, fincados na beira do rio.
Não retornamos a Brasília para nada: netos, filhos, amigos, alunos, botecos e clube, tudo que era o cotidiano ficou para trás. Até agora, funcionou. Eu, múmia antiga e tabagista, continuo saudável. A velha esposa, bem mais hígida do que eu, também.
O mesmo não posso dizer de vários amigos que deixei para trás, na capital da esperança, e que perderam a briga com com o bichinho danado e insidioso chamado Coronavirus. A tal gripezinha do capitão/presidente é coisa bruta, é quase praga bíblica, peste cruel que não pede licença pra entrar em lugar algum. Mas deixemos de lado a opinião presidencial, que dela se ocupará a História (só não me contenho: o julgamento dos que virão depois do nós será duro com esses nosso tempo e escolha).
Dito isso, alinhavo aqui nestas mal traçadas algumas observações que fiz durante este estranho período.
A primeira delas é que a gente é muito bobo em matéria de roupagem, cabeleira, jóia e bijuteria, esmalte de unha e quetais. Tudo bobagem, leitora. Imensa bobagem, leitor. O que, nos tempos de normalidade, parece indispensável, é só a nossa vulnerabilidade quanto à opinião alheia.
“Que irão pensar fulano ou beltrano?”, é o comando que escraviza o bicho homem durante a maior parte da sua existência… Nesses 9 meses, não comprei uma singela e escassa peça nova para acrescentar ao meu guarda roupa…. Descobri que tenho roupa de sobra, que os armários estão cheios de sapato e chinelo de que nem me lembrava. Tudo novo, tudo usável, tudo bem arrumadinho.
Não fui ao cabeleireiro. Não se espantem leitora e leitor, é cabeleireiro, sim. Eu, metido a besta, achava indispensável ir ao “coiffeur”… Vanitas vanitatum! Tenho tido as melenas aparadas pela fiel companheira ( que não é do ramo capilar, note-se) e fico feliz.
Outra observação: reli muito. Sim, reli. Steinbeck, Umberto Eco, Garcia Marquez, João Ubaldo, Jorge Amado, Nelson Rodrigues… Há mais arte em “Baudolino” ou no “Inverno da nossa desesperança” do que em quase todas as novidades literárias que eu me obrigava a procurar, preocupado em não ficar “desatualizado”…
Reli tanto que redescobri Giovanni Guareschi! Estavam guardados, nas estantes mais longínquas da minha biblioteca, cheios de poeira, vários Dom Camilo. Que prazer voltar ao vale do Pó, à Emília Romagna e reencontrar o padre reacionário e o prefeito comunista! Em tempos de esquerdopatas versus bolsonazis, nada mais atual.
Prestei muita atenção às eleições. Muita mesmo. Mais às eleições do Big Brother do Norte do que às nossas singelas e tupiniquins eleições para prefeito e vereador. Afinal, segundo nosso mandatário de plantão, o que é bom para a América é bom para nós também. Assim, não desgrudei do noticiário ianque. E atente bem, leitora, atente bem, leitor: noticiário original, CNN e Fox News, sem intermediários, sem imprensa fétida.E torci. Como torci! A cada votinho a mais para os azuis (ironia: os vermelhos deles são os amigos do capitão/presidente, os azuis deles são os inimigos) eu me levantava do sofá, socando o ar, como em comemoração de um gol do meu Fluminense – coisa rara hoje em dia, reconheço. Adorei o suspense de Wisconsin, de Ohio e da Pensilvânia. Mas foi Atlanta, na Georgia, que me fez comemorar como se tivéssemos ganho a Copa. Nada melhor do que ver confirmada uma afirmação que faço desde tempos imemoriais, em que dava aula em curso preparatório pra vestibular: os USA são o veneno, mas são também o antídoto. Em matéria de capitalismo e de democracia representativa, de segurança institucional, continuo pensando assim.
Quase entrei em êxtase quando, confirmada a vitória azul, vi o ilustre Mr. President Donald J. Trump parecendo um zumbi, resmungando para si próprio: “I won, I won!”. Não tem preço, o ver a lucidez vencer a maluquice, a responsabilidade ganhar do atrevimento, a sanidade mental derrotar terraplanistas e fanáticos de todo o gênero. Nada mais reconfortante do que ter esperança e vê-la triunfar. E sentadinho no meu sofá, vinguei-me daquele ser estranho e arrogante, xingando-o baixinho: “Looser, Looser!” Deve ter doido um bocado para mr. Trump, a derrota: afinal, diz ele , a única coisa feia é perder.
Outra observação:
faz nove meses que abandonei, solitária na garagem do meu prédio na Cidade Céu, a queridíssdima Dona Mercedes. É como chamo ao carro, comprado a prestações ainda não totalmente pagas, um Mercedes Benz com 5 anos de fabricação, que me faz sentir poderoso quando desfilo com ele pelas ruas candangas. Aqui, no distanciamento social, um humilde Fiat é muito mais útil para vencer os quase trinta quilômetros de lama, poeira e buracos que separam minha casa da BR , do asfalto. Tenho pensado muito na Dona Mercedes: vai ser uma dificuldade botar a coitadinha para andar de novo: não sei nem se os pneus, após nove meses de imobilidade, ainda concordarão em rodar. Enfim, devo desculpas a ela, Dona Mercedes, por a haver abandonado.
Engraçado é que com filhos e netos, que também largamos para trás (não vemos, a velha esposa e eu, nem filhos nem netos faz quase um ano), não tenho tido preocupação maior: basta saber notícias pelo whatsapp, e ponto. Acho que foi uma lição importante: a gente acha que é indispensável, que sem a nossa presença, filhos e netos estarão sós, abandonado… Grossa bobagem. Aprendi aqui com passarinhos. Como já escrevi no início destas mal traçadas, estou na roça. A minha casa tem sido espaço de construção de ninho de passarinho.
Assanhaço, canário e, do lado de fora, guacho. Todos fazem ninho mais ou menos na mesma época. Os craques são os guachos, que tecem ninhos grandes e em locais altíssimos, com invejável competência. Os assanhaços são trapalhões: um casal deles tentou fazer um ninho numa trave da varanda e…. por várias vezes eles mesmo tropeçaram na obra inacabada e a derrubaram.
Quando os filhotes ficam um pouco crescidinhos, recebem um belo pontapé no traseiro: ou voam ou se estabacam no chão. Não é maldade, não. É sabedoria. E não se pense que são pais desalmados os passarinhos. Outro dia, encontrei um guachinho no chão e fui bisbilhotar. Assim que cheguei bem perto, a mamãe guacho veio em vôo rasante, como que avisando que não chegasse muito perto, que o filhote tem dono, cuidado aí!
Acho que a gente é igual, só não sabe disso. Tenho a sensação de que esse tempo longe de filhos e netos foi bom pra todos: para eles, que puderam crescer na adversidade e na nossa ausência e, principalmente, para nós, que aprendemos que não somos indispensáveis.
Essas são observações de um tempo esquisito que, espero, esteja próximo de se acabar porque, afinal de contas, a vacina vem aí, e a saudade de ir pro boteco, essa é irremediável.