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quinta-feira, abril 25, 2024

Histórias da Quarentena

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Histórias da Quarentena

Barricadas

O pessoal da padaria não mudou muito não. Continuam de bom-humor, sem máscara e distribuindo sorrisos de bom dia, sem temer o contato social. Apenas botaram um álcool em gel no balcão do caixa e estão tendo cuidado para entregar o saco de pão, de modo a não encostar nos dedos dos clientes.

Já a mocinha da farmácia anda numa antipatia só. De máscara e cabelo preso, somente seus olhos estão à vista. E os olhos não mentem. Ali por baixo ela pode até abrir um sorriso de conveniência, mas o que vemos são os olhos semicerrados, opacos ao exterior como numa medida antisséptica contra a luz, olhos igualmente inquietos e intranquilos.

Também coitada, ela lida com doentes a vida inteira. Imagina sempre atender gente espirrando, tossindo, com coriza, e comprando amoxicilina, nessa mania brasileira de se automedicar. A mocinha da farmácia deve tomar os seus cuidados, e está certa em fazer isso. Mas para mim não deixou de ser um contraste marcante ir à farmácia depois de ter comprado uns pães com o pessoal boa praça da padaria.

No balcão do caixa havia uma engenharia de guerra. Montaram uma barricada com gôndolas vazias envolvidas por um cordão de isolamento, de modo a evitar que os clientes cheguem a menos de dois metros do caixa. A máquina do cartão fica esgoelada, com o cabo quase rasgando de tão esticado. De um lado da trincheira, o cliente comprando leite para sua filha pequena; do outro lado, a moça da farmácia, de máscara, luvas e com olhos inquietos transpirando raiva, indagando com seu semblante incomodado por que razão especial esse cliente folgado ousou sair de seu isolamento para ir à farmácia. O que fazer, eu que vim na paz e fui forçado a representar esse teatro de guerra…

Mas ainda não havia chegado a minha vez de guerrear. Eu aguardava na fila dos combatentes. À minha frente, uma senhora idosa, um pai com uma menina, e eu. A menina, de uns oito anos, estava toda espevitada, como boi de rodeio quando abrem a porteira. Mexia em tudo, tirava tudo do lugar, perguntava sobre tudo, aproximava-se de todos.

O pai brigando sem parar. “Duda, volta já aqui menina”. “Duda, tira a mão, não pode tocar nas coisas”. Mas a Duda estava com uma sede de explorar como se estivesse presa há uma semana em casa. “Coitada, está presa em casa há uma semana”, disse o pai. E emendou com um “essas crianças…”, desejando angariar a simpatia dos demais clientes.

Mas a senhora idosa, ela que estava na linha de frente da trincheira, batalhando com a moça do caixa naquela guerra fria de olhares – a senhora idosa fechou a cara e meneou a cabeça em grave reprovação, condenando aquelas atitudes inconsequentes da Duda, em plena era de coronavírus. O pai ficou um pouco constrangido, e se enfiou pela farmácia a tomar Duda pelo braço, enquanto a senhora suspirou profundamente, com olhos faiscando de raiva e preocupação.

Tempos estranhos. Talvez mês passado essa senhora estivesse puxando assunto com a Duda enquanto esperava na fila do caixa, rindo-se das graças da menina, e falando ao pai como a menina era espertinha. Talvez até fizesse um carinho na cabeça dela.

Mas vivemos tempos de guerra. Guerra contra um vírus e desconfiança geral entre a raça humana. Alguns idosos começaram a desenvolver certa fobia em relação às crianças. Aqueles seres de baixa estatura a rir e a correr entre uma brincadeira e outra agora são vistos apenas como portadores de uma doença que pode significar a morte para quem já está no crepúsculo da vida. Para alguns idosos, infelizmente, as crianças viraram nada mais que aedes aegypticom pernas.

Já ouvi dizer que alguns avós, que andavam a ligar para seus filhos toda a semana insistindo para eles trazerem os netinhos, agora dizem: “Pelo amor de Deus, não traga!” Até aí tudo bem, mas alguns estão cogitando nunca mais ver os netos, porque nunca se sabe quanto tempo o vírus fica incubado, e os netos podem ser assintomáticos e assim perfeitos vetores da doença, sabe-se lá.

Mas chegara a minha vez na batalha. Do outro lado da barricada a moça da farmácia com sua máscara. Não travei contato visual, mantive-me distante e apertei o código do cartão com o mindinho; em seguida, peguei cuidadosamente a sacola com o leite e fui embora o mais rápido que pude, sem olhar para trás.

Rodrigo Bedritichuk é brasiliense, servidor público, pai de duas meninas e autor do livro de crônicas Não Ditos Populares

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